Registro no período de acolhimento e adaptação: instrumento valioso

Registro no período de acolhimento e adaptação: instrumento valioso

Geralmente desvalorizado, o registro da observação das crianças durante a adaptação é uma ferramenta vital para encaminhar as bases da nova vida pedagógica.

No início do período letivo, professores, coordenadores e diretores estão ansiosos, nervosos, animados e divididos entre receber as crianças, dar atenção às famílias e organizar os espaços. Tudo muito intenso, tenso e carregado de mistérios:

Como serão as minhas crianças?
Quais personalidades se destacarão?
Como as famílias vão se relacionar com a escola e comigo?
Espaços-tempos-materiais estão adequados às necessidades?
Minhas estratégias para acolher o novo público vão gerar bons frutos?

Estas e outras dúvidas certamente ocupam mentes e corações de educadores que começam a construir um casamento de almas com as “novas” crianças, suas famílias e até colegas de profissão. E é justamente neste turbilhão emocional que a observação focada, os registros e o processo reflexivo ficam pendurados na categoria “faço se der”! Talvez a equipe ainda busque fotografar as crianças nos momentos da nova rotina para construir aqueles “cartazes-prestação de contas” para as famílias.
Será que este é o uso mais importante do registro do período de adaptação e acolhimento?

O planejamento dos primeiros dias

É claro que a primeira semana depende de um planejamento prévio, que antecede o (re)conhecimento dos interesses e necessidades das crianças. Professores costumam planejar os primeiros dias do ano com base em suas experiências, elaborando propostas que acolham as crianças, despertem seus interesses e até permitam ambientes calmos e seguros para os pequenos se vincularem ao contexto inédito.

Nesse sentido, são planejados cantos de brincadeiras nas salas, espaços propositores com atividades diversas, brincadeiras no parque, músicas e livros com histórias envolventes, materiais para provocar e enriquecer as conversas na roda…

Aí, a pergunta fundamental que surge é: o que o professor faz com toda essa vivência? As experiências colhidas neste período vão servir para alguma coisa? Será que adaptar as crianças ao novo contexto é o único propósito do período de acolhimento?

⇒ Se a resposta for sim, então desafio você a continuar a leitura desta postagem e, talvez, colher novas perspectivas.
⇒ Se sua resposta for não ou se ficou em dúvida, vamos tentar clarear a questão 😉

Sempre Madalena…

Lembrando da Madalena Freire, se pretendemos praticar uma pedagogia não espontaneísta, isto é, que não parte de “adivinhação” ou “palpite”, é preciso apoiar a atuação pedagógica em fatos.

Como assim?

Se esperamos fazer uma ESCUTA INAUGURAL das crianças e das situações reais de aprendizagem, é preciso levantar elementos que apoiem as nossas atitudes e planejamentos. É olhar para uma situação com foco de observação, fazer registros (anotações, fotos e vídeos), rever este material com calma, pensar sobre os acontecimentos REAIS e levantar possibilidades para novos encaminhamentos (novas propostas e planejamentos).

Esta é a tradução de uma atuação apoiada em fatos e pensamento pedagógico fundamentado.

Por meio do ciclo virtuoso que envolve planejar – atuar/propor – observar – registrar – refletir – (re)planejar é que o professor escuta suas crianças.

E por que tudo isso é importante no início do período letivo, quando mal conhecemos as crianças?
Porque este é o momento ideal para conhecer cada criança, perceber seus interesses e necessidades singulares, poder agir significativamente para construir vínculos e iniciar a jornada de aprendizagens. É pensar:
O que afeta esta criança?
O que a interessa?
Quais questões do desenvolvimento precisam ser observadas e trabalhadas?
Como estão suas emoções?
Como se relaciona com as crianças e os adultos?
Como explora os espaços?
Como se expressa?
Como brinca?
Como se coloca diante de problemas?
Quais são os limites do seu corpo? E suas destrezas?
Como está em relação aos cuidados de si, do outro, do ambiente?

Estas são algumas das perguntas fundamentais que nos levam a conhecer cada pequeno.

O ciclo virtuoso de pensamento pedagógico

Mas, como é possível responder a estas questões sem observar as crianças em variadas situações e registrar e pensar sobre os fatos anotados?
Se não fizermos o ciclo virtuoso do pensamento pedagógico, só nos resta continuar com planejamentos pré-programados, que desconsideram a singularidade das crianças e do grupo que se forma e ainda perdemos oportunidades para identificar questões importantes a serem investigadas. É preciso ir, aos poucos, revendo as atividades já planejadas para o período de acolhimento, de modo a responder os questionamentos que vão surgindo durante a reflexão sobre os registros:

Que interessante o modo como esta criança se expressa, preciso investigar melhor. Na próxima brincadeira no parque, vou levar os baldinhos e as forminhas para conversar com ele sobre comidinhas.

Estou vendo que esta criança não está se alimentando na hora do almoço: será que ainda não come sozinha? Não gosta da comida? Vou conversar com a família.

Percebo que esta menina não consegue brincar em grupo, apesar de se aproximar dos colegas. Vejo que não compartilha os brinquedos. Vou me aproximar do canto de faz de conta para intervir na brincadeira.

Fulano fica irrequieto nos momentos de contação de histórias. Investigar: interesse pelo livro escolhido; entendimento do enredo/maturidade da linguagem; hiperatividade…

Questionamentos como estes certamente vão surgir à medida que se observa e registra, mas só serão respondidos se o professor refletir sobre o ocorrido e, a partir disso, planejar novas intervenções. Isto é fazer escuta e colocar a criança como protagonista do processo de ensino-aprendizagem.

Indo além, ao registrar as ações das crianças no início do período letivo, se constrói um ponto de partida ou um marco inicial do desenvolvimento, que permitirá aos professores e às famílias acompanharem os avanços e as necessidades dos pequenos ao longo do ano. Tudo o que se quer dos famosos relatórios individuais é apresentar os percursos das aprendizagens das crianças!

Registro e documentação para a criança: organizar as experiências e valorizar o protagonismo das ações

Até aqui falamos sobre os registros com foco na reflexão do professor. Porém, as aprendizagens das crianças também necessitam de memória e sistematização. Por isso, a documentação pedagógica voltada para a criança PRECISA ENCHER AS PAREDES DA SALA! É por meio dos marcos organizados das vivências das crianças que elas relembram o ocorrido, reveem, repensam, fazem novas relações, se conversam… e criam conceitos. Muitos educadores acreditam que vivência e experiência são suficientes para construir aprendizagens, no entanto, Vigotski nos lembra que é preciso tomar consciência sobre as experiências para aprender e aprofundar. 

Outro aspecto importante da documentação voltada para as crianças é a valorização daquilo que elas vivem e de seu protagonismo:
A brincadeira no parque foi tão importante, que a professora colocou as fotos na parede!
A minha pergunta chamou a atenção da professora e dos colegas e a professora a colocou na sala!
Meu desenho rendeu conversas e ocupou a parede da sala!

Como fazer isso no meio da loucura que são os primeiros dias do ano letivo?
Da melhor forma: algumas fotografias que você tirou evidenciam acontecimentos/descobertas/materiais importantes para as investigações das crianças? Imprima duas ou três (em tamanho ampliado!) e já cole na parede. O fulano falou algo relevante? Transcreva, comente com as crianças e cole na parede! Pensou sobre um desdobramento? Escreva num post it e… parede! Tudo sem decoração ou firula! O que interessa é o conteúdo e a organização na ocupação das paredes de modo a garantir que as crianças revisitem e entendam suas jornadas.  

Ao final da primeira semana, com os registros dos acontecimentos significativos ocupando a sala, as crianças começam a perceber que o espaço lhes pertence, que são protagonistas das suas histórias e que a professora as escuta e valoriza seus saberes.

Concluindo…

Para os primeiros dias do ano, nossa dica é planejar sim uma série de ambientes e propostas, levando em conta a experiência profissional do professor – se você é um professor em começo de carreira, converse com colegas mais experientes.

Ao mesmo tempo, é importante armar-se de uma pauta de olhar para embasar a observação individual, fazendo um rodízio entre as crianças observadas, nas variadas situações do dia. Como já discutimos em diversas postagens do Tempo de Creche, é impossível observar mais do que 3 ou 4 crianças individualmente, numa mesma atividade.

Por fim, registre e cole nas paredes! Não espere o tempo passar e não economize espaços! Preencha as paredes com vida pedagógica!

O livro Os bebês entre eles, das pesquisadoras Sylvie Rayna e colegas, fala em “observação minuciosa, detalhista, que pode ser revista quantas vezes for necessário para desvendar”. Esta atitude pedagógica é importante para desconstruir certezas, ou o “piloto automático” da atuação espontânea, que não se baseia em fatos reais. Por isso, sugerimos que você diminua a ansiedade de propor atividades mirabolantes nos primeiros dias, oferecendo às crianças momentos em que se possa exercitar o olho no olho e a proximidade e favorecer a autonomia do brincar para poder observar, registrar e, de fato, conhecer o grupo. Ainda citando o livro da Sylvie, o período de acolhimento deve servir para observar as crianças “estranhando o familiar e familiarizando-se com o estranho”.

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PARA SABER MAIS…

Para mergulhar no tema do registro, leia as postagens:

REGISTRO INDIVIDUAL: A HORA É AGORA!

REGISTROS FOTOGRÁFICOS: OLHANDO COM OS OLHOS OU COM A IMAGINAÇÃO?

INSTRUMENTOS DE PLANEJAMENTO, REGISTRO E REFLEXÃO: CONSTRUA O SEU!

RELATÓRIO INDIVIDUAL: PRECISAMOS REPENSAR ESTE DOCUMENTO!

Para conhecer o Ciclo Virtuoso do processo de ensino-aprendizagem:

O QUE VEM ANTES: A ATIVIDADE OU O OBJETIVO DA ATIVIDADE?

PREPARAR ATIVIDADES: O DESAFIO DE PLANEJAR O IMPREVISÍVEL

O livro Os Bebês entre eles: descobrir, brincar, inventar juntos é de 2011, da Editora Autores Associados Ltda. Foi escrito pelas pesquisadoras francesas e italianas Mira Stamback, Michèle Barrière, Laura Bonica, Renée Maisonnet, Tullia Musatti, Sylvie Rayna e Mina Verba. A tradução e a coordenação editorial são da Suely A. Meelo, Maria Carmem S. Barbosa e Ana Lúcia G. de Faria. Este livro faz parte de uma coleção excelente que, além de apresentar noções de como as crianças pequeninas interagem com outras crianças e com os objetos, o próprio processo científico de pesquisa descrito é uma inspiração para orientar o olhar dos docentes da educação infantil.

5 comments

Texto bom! Busca esclarecer a importância de registrar todos fatos e características individuais e buscar utilizar meio que facilitem seus registros.

Roteiro de observação do período de adaptação.
* Sentiu acolhida?
* Interagiu com as crianças e as professoras?
* Demonstrou maior interesse em quais momentos?
* Demonstrou autos-cuidados?
*Dividiu brinquedos com os colegas?
* Soube lidar com as emoções e sentimentos?

Olá Valquiria!
Obrigada pela contribuição.
Mas preferimos ser mais abertos e específicos:
Como uma criança demonstra se sentir acolhida? O que ela faz especificamente, que pode nos dar sinais?
O que nos dá indícios de interesse? Quais momentos são os mais interessantes durante o acolhimento para alimentar o professor com informação? Vamos lembrar de que quem olha tudo, não olha nada!
Talvez caiba se perguntar o que a criança já faz em relação ao auto-cuidado?
Compartilhar objetos é uma questão muito ligada à faixa etária e ao desenvolvimento da brincadeira. Que tal observar a brincadeira e se inteirar dos diferentes contextos em que podem ocorrer os compartilhamentos?
Lidar com emoções e sentimentos é um aspectos do ser humano que deve ser praticado e aprendido ao longo de toda a vida. Em quais situações (e de acordo com as faixas etárias) esperamos que as crianças controlem suas emoções?
Espero que tenhamos contribuído com os seus questionamentos 😉

Uau. Que texto propício!
Os verbos do ciclo do planejamento citados aqui me inspiraram: sei agora – ainda mais – sobre a importância de estar realmente atenta às singularidades da minha turma.

Agradecida estou por essa partilha.
Vamos ao ano letivo de 2023!

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