Brincadeira: um território para a oralidade e a escrita

Brincadeira: um território para a oralidade e a escrita

Brincadeira, oralidade e escrita: como tudo isso se relaciona?

Numa nova tradução dos textos de Vigotski (livro Psicologia, educação e desenvolvimento: escritos de L. S. Vigotski), o autor nos diz que a brincadeira não deve ser considerada apenas como uma das atividades mais frequentes na vida de uma criança. Muito mais do que isso, a brincadeira “é a linha que guia o desenvolvimento na idade pré-escolar”.

Vigotski também faz questão de afastar o clichê de que a brincadeira é prazerosa para a criança e por isso ela brinca. Quem observa o faz de conta, sabe que brota um turbilhão de emoções que expõe as crianças à alegria, ao prazer, à satisfação e também ao medo, à angústia, à raiva e até à tristeza.

Mas afinal, por que as crianças brincam?

Para Vigotski, a brincadeira “deve ser sempre entendida como uma realização imaginária e ilusória de desejos irrealizáveis”. Simplificando, criança brinca porque deseja fazer coisas que ainda não pode fazer na vida real. E assim, as realiza na imaginação, no universo do faz de conta!

Criança brinca de dirigir um carro de mentira porque não pode dirigir um de verdade.
Criança tem vontade de experimentar ser o papai ou a mamãe, então assume um papel numa brincadeira.
Criança quer tratar um cachorrinho doente, então finge que o urso de pelúcia é o Totó e as peças do jogo de montar são os instrumentos do veterinário.

Nessa jornada, vai elaborando os conteúdos pelos quais se interessa e tomando consciência pela ação. Mais uma vez, de acordo com o mestre, “A imaginação […] representa uma forma especificamente humana de atividade da consciência; como todas as funções da consciência, forma-se originalmente na ação”. Então, é no fazer da brincadeira que a criança entende o mundo que a cerca e constrói significados.

Até aqui pudemos compreender porque a criança brinca e entender que um dos valores fundamentais da brincadeira para o desenvolvimento humano é a consciência que se forma durante as ações do brincar.

Vamos além?

Outro aspecto fundamental estudado pelo Vigotski é o desenvolvimento da linguagem oral e escrita. Nesta tradução, o autor chama a atenção para um ponto importante na aprendizagem da língua falada e da língua escrita: a estruturação da capacidade de simbolizar e as oportunidades culturalmente significativas para exercitar esta construção.

O que isso quer dizer?

Vigotski nos oferta o conceito de “escrita da fala”. Para o autor, a criança precisa aprender a falar, incorporando palavras e conceitos à sua biblioteca particular de linguagem oral. Depois, começa a aprender a desenhar a fala ou fazer a “escrita da fala” num sentido mais amplo, exercitando a liberdade de criar e testar hipóteses de escrita para escrever do modo como se fala.

Todo este processo de aprender a falar com consistência e aprender a “escrever a fala”, deve anteceder a aprendizagem da mecânica da escrita, a qual Vigotski chama de “escrita da palavra”.

Aprofundando esta questão: a fala em si é uma construção simbólica sofisticada que depende de maturação cognitiva e social. A criança pequena precisa associar palavras a significados, não esquecendo que palavras são conjuntos de símbolos convencionalmente estabelecidos.

Costumeiramente, mesmo antes da criança se sentir confortável com a conquista da oralidade e da escrita da fala, chegamos com um segundo conjunto simbólico – a alfabetização – que vai ser construído sobre algo que ainda carece de amadurecimento. A proposta do Vigotski é considerar o período transitório de informalidade sobre a escrita como base para a aprendizagem formal da leitura e da escrita – ou a alfabetização.

Mas o que isso tem a ver com a brincadeira?

Tudo!
A pesquisadora Gisela Wajskop afirma que, ao enriquecer o faz de conta,  o professor oportuniza situações em que as crianças elaborem os significados e valores da cultura e desenvolvam processos de comunicação, expressão e significados linguísticos ao interagirem na brincadeira. Outro aspecto da pesquisa da Gisela estabelece uma relação entre a leitura em voz alta de livros de literatura infantil e um brincar mais interessante e complexo – o “brincar letrado”. Segundo a autora, as inspirações e o simbolismo das boas histórias infantis podem disparar brincadeiras com novas temáticas e repertório gestual e linguístico.

Numa palestra de 2021, a canadense Shelley Stagg Peterson apresentou uma pesquisa que ajuda os professores a observarem, acompanharem e compreenderem o desenvolvimento da oralidade durante os momentos de faz de conta. Em suas investigações, Shelley concluiu que, enquanto brincam, as crianças desenvolvem as linguagens oral e gestual.

Após observar e analisar 3441 falas de crianças de 4 a 6 anos, em situações de faz de conta, a pesquisadora organizou o conteúdo em categorias e 36 tópicos que resumem os propósitos das crianças ao se comunicarem umas com as outras durante a brincadeira. Inspirada na pesquisa apresentada pela Shelley, organizei alguns dos conteúdos na tabela abaixo:

 

As investigações da canadense têm ajudado professores a registrarem e avaliarem o desenvolvimento oral das crianças e também a pensarem sobre oportunidades para incorporar mais palavras e a escrita no contexto da brincadeira.

A ideia por trás desta discussão coloca a brincadeira num lugar privilegiado do desenvolvimento infantil para crianças de zero a 8, 9 e até 10 anos de idade. Ao construir cenários interessantes para que elas brinquem, professores da Educação Infantil e do Ensino Fundamental contribuem para o desenvolvimento do próprio brincar, tornando-o mais complexo, incentivam a fala e despertam o envolvimento com o universo da escrita. Tudo isso sem esquecer que a brincadeira gerada pelas próprias crianças é sempre um contexto significativo para elas.

Por isso, vale lembrar aos professores do Fundamental que a brincadeira não deixa de ser um território de aprendizagem e de desenvolvimento porque a criança entrou no primeiro ano! A brincadeira olhada com intencionalidade pedagógica e liberdade criativa (e “brincativa”) continua sendo fundamental para o exercício das relações, a elaboração de situações de interesse e para o aprendizado da linguagem oral e escrita “em ação”, como nos aconselhou o mestre Vigotski.

Assim, percebemos que a brincadeira em si é uma linguagem que funciona como um guarda-chuva que abriga o desenvolvimento da oralidade, da escrita e das construções simbólicas que as crianças criam durante a infância. Contudo, é precioso um olhar intencional para observá-las e oferecer objetos, cenários e provocações para disparar o exercício da imaginação e a elaboração de narrativas  interessantes e aprimoradas. Baixe a tabela baseada nos estudos da pesquisadora Shelley Stagg Peterson (ou copie e cole) e acompanhe a fala das suas crianças nas brincadeiras. Abra os ouvidos, o caderno de registro e o coração para incluir momentos de brincadeira de faz de conta na rotina das crianças, não como mera recreação, mas como uma atividade simbólica que abre caminhos para o desenvolvimento das inúmeras linguagens da infância.

 

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PARA SABER MAIS…
A pesquisadora e professora Gisela Wajskop criou o conceito de “brincar letrado” que reúne o diálogo entre  brincadeira, literatura, oralidade e escrita. Leia sobre este tema no artigo Pesquisa-ação colaborativa como estratégia de formação continuada em creches 

Conheça mais sobre a pesquisa da professora canadense Shelley Stagg Paterson e suas colegas, lendo o artigo Multimodal meaning-making during play in two Northern Canadian Indigenous kindergarten classrooms e assistindo o vídeo Discussant talk: Reading in social context and the notion of “place” – 2021, no YouTube, ambos em inglês. 

  A nova tradução do Vigotski está no livro Psicologia, educação e desenvolvimento: escritos de L. S. Vigotski, com organização e tradução de Zoia Prestes e Elisabeth Tunes, da editora Expressão Popular

Leia mais sobre  oralidade, escrita e brincadeira nas postagens:

 

6 comments

Fico maravilhada com a riqueza do brincar de faz de conta, não só para fazer a escuta das crianças, mas
também oportunizar novas experiências e descobertas.

Muito interessante o texto, adorei!!!

A tabela mencionada é algo muito importante para a nossa prática na Educação infantil…

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