Observação generosa: a dificuldade de observar e registrar a realidade

Observação generosa: a dificuldade de observar e registrar a realidade

Por que é tão difícil registrar?
Por que as informações apontadas nos registros, às vezes, não nos dizem nada?
Estou no final de um projeto de formação desenvolvido com uma rede municipal de ensino de São Paulo e, revendo os meus próprios registros, decidi compartilhar alguns pensamentos com os leitores do Tempo de Creche.

A linha mestra do projeto foi construir aprendizados da prática pedagógica a partir de discussões e reflexões de momentos de brincadeira espontânea das crianças, gravados em vídeos realizados pelos professores.  

A cada encontro formativo, assistíamos a vídeos com duração de 2 a 4 minutos e discutíamos sobre as ações das crianças e as propostas dos professores.

Num dos encontros, “gastamos” 1 hora e 30 minutos assistindo o mesmo vídeo, descrevendo e interpretando as cenas de brincadeira de faz de conta vividas por dois grupos de meninas. A cada repassada, novos trechos chamavam a atenção dos professores e precisavam ser revistos, às vezes, com velocidade reduzida ou passando quadro a quadro.

Este acontecimento pode dar a impressão de exagero no detalhamento ou de exaustão do processo, mas o que ficou claro ao final do encontro é o hábito entranhado de olharmos as cenas pedagógicas de forma interpretativa, rotuladora e excessivamente criativa.

O que quero dizer é que o professor olha e descreve a cena pedagógica com o coração, quase cego pelas próprias experiências profissionais que carrega ao longo de sua vida.

Sempre utilizo o termo “observação generosa” nas minhas formações, mas nunca me dei conta da dificuldade que muitos educadores têm para interpretar o que isso quer dizer.

O filósofo americano Donald Schön afirma que “nos estágios iniciais do ensino prático, reinam a confusão e o mistério”. Na perspectiva da prática reflexiva defendida pelo autor, ao lidar com a realidade, o educador percebe a qualidade do próprio desempenho profissional. E isso não é fácil!

Nosso cérebro não busca conflito e desconforto. Também é avesso a questionamentos, procurando construir “historinhas e explicações fáceis” para aquilo que o deixa em dúvida. Por isso é tão difícil descrever/registrar a realidade com isenção. Procuramos acomodar tudo o que vemos dentro das nossas experiências, deixando escapar a realidade e as surpresas.

Aí está a explicação para a dificuldade de observar a cena pedagógica com a generosidade da isenção. Para isso acontecer, é preciso “simplesmente” DESCREVER o que as crianças fazem e também o que o professor faz, atendo-se aos fatos e não às interpretações.

Então, no lugar de já ir registrando “Maria brincou de fazer comidinha”, dizer “Maria brincou com a panelinha e a pazinha, fazendo movimentos de misturar”. No lugar de dizer, “Pedro ninou o bebê”, é dizer Pedro sacudiu a boneca no colo, fazendo gesto de acalanto.

E por que valorizar esta precisão?

Nos casos citados acima, não podemos esquecer que as crianças podem estar brincando de explorar movimentos e imitá-los sem ainda atribuir-lhes significados. Segundo Elkonim, este é um dos marcos do amadurecimento do brincar e, crianças pequenas podem estar descobrindo e explorado a imitação dos gestos dos adultos sem ainda estarem de fato no faz de conta.

No caso do encontro formativo mencionado, na interpretação imediatista dos professores, num dos vídeos analisados, uma menina “demonstrou estar incomodada com a filmagem da professora durante a brincadeira”. A cena mostrava a menina indo até um grupo de meninas e, sem pedir, pegava um dos brinquedos que estava sendo usado pelo grupo. A menina repetiu a ação e, depois, olhou para a câmera.

Ao revermos a cena com cuidado e isenção de interpretação prévia, percebemos que o grupo de meninas impediu que a nossa protagonista pegasse um novo brinquedo. Indignada e surpresa, a menina olhou para a professora (e não para a câmera!), como quem pede ajuda.

Para chegarmos a esta interpretação foi preciso rever toda a cena, descrever as falas, os gestos e as expressões generosamente, isto é, de coração aberto para acolher o que a realidade apresentava.

Quantas vezes não caímos na tentação de julgar?

Quantas vezes não atropelamos as ações das crianças registrando aquelas “historinhas” pré-fabricadas que transitam na nossa cabeça?

Quantas vezes dizemos que fulano brincou de fazer bolinhos no tanque de areia, quando na verdade a criança estava explorando a areia e investigando suas propriedades na mistura com a água?

Por isso é tão difícil registrar! E por isso, muitas das informações dos registros não levam a nada!

Tudo piora quando registramos a nossa ação pedagógica. Aí é que o cérebro nos prega peças disfarçando e embelezando atitudes que, se revistas, poderiam trazer reflexões e desenvolvimento profissional.

Quais lições pudemos extrair do produtivo encontro formativo que vivi com o grupo de professores?

  1. Educar nosso olhar para não cair na tentação de interpretar no lugar de descrever quando observamos, registramos e damos uma primeira olhada nos registros.
  2. Ver e rever fotos e vídeos, ler e reler as anotações. A cada re-olhada generosa, descobrimos fatos novos que levam a diferentes interpretações.
  3. Usar e abusar da maravilhosa ferramenta de registro que é o vídeo! É por meio dele que podemos observar trechos da prática com calma e pensamento centrado em evidências. Planeje-se para poder fazer pequenos vídeos durante as propostas: aproveite os momentos de brincadeira autônoma das crianças ou combine a ajuda de um colega ou do coordenador.
  4. Use o vídeo como instrumento de estudo e discussão com sua equipe. Nada melhor do que um recorte de realidade para embasar discussões. Temos que concordar que um pequeno vídeo traz muito mais informações do que um relato repleto de subjetividade.

Por fim, permita-se errar! Quem não admite errar não consegue se olhar. Foi incrível perceber que os professores aprenderam com os vídeos de práticas competentes e também com os vídeos que apresentaram fragilidades pedagógicas. Aliás, estes últimos renderam as melhores discussões e aprendizagens!

É fazendo, pensando diferente e refletindo sobre os resultados que o professor qualifica sua prática pedagógica. Segundo Schön, é pensar “e se?” e ter a liberdade para se arriscar: e se eu propor de outro jeito? E se eu oferecer este material? E se eu deixar essa brincadeira acontecer e ver onde as crianças chegam? E se eu levar esse tema para a roda de conversa? E se eu der autonomia para as crianças se resolverem? E se…? Assumir as possibilidades do “e se?” é se arriscar embasado na reflexão, sem culpa, sem julgamento e com muita vontade de amadurecer.

Assim é a vida, aprendemos com os acertos e também com os erros… quando nos permitimos olhar para eles.

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PARA SABER MAIS…

Para aprofundar o conhecimento sobre o pensamento reflexivo do profissional, leia o livro Educando o Profissional Reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem, de Donald A. Schön. EditoraArtmed, 2000.

Sobre o registro e a observação, leia as postagens:

REGISTROS FOTOGRÁFICOS: OLHANDO COM OS OLHOS OU COM A IMAGINAÇÃO?

INSTRUMENTOS DE PLANEJAMENTO, REGISTRO E REFLEXÃO: CONSTRUA O SEU!

PAUTA DO OLHAR: O QUE O PROFESSOR PRECISA OLHAR PARA REGISTRAR?

 

2 comments

Muito pertinente. Registrar as observações tem sido meu “Calcanhar de Aquiles”. Agradecida por provocar minha reflexão sobre minha postura e formato do meu olhar.

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