Desenvolvimento infantil: como começa a brincadeira?

Desenvolvimento infantil: como começa a brincadeira?

Quando a criança começa a brincar? Quais fatores determinam a evolução da brincadeira? Como isso dialoga com o desenvolvimento infantil? O que é considerado experimentação, brincadeira e faz de conta? Conhecer a fundo esta linguagem da infância nos permite fazer uma escuta qualificada dos interesses e necessidades das crianças. Nesta postagem vamos partir dos estudos do psicólogo russo Daniil B. Elkonin para entender os marcos da jornada da brincadeira na infância.

Diversos autores se propuseram a estudar a essência da brincadeira: Brugère, Pikler, Piaget, Vigotski… mas o russo Elkonin trouxe uma visão especial para este tema. Ao ler ser seus textos, parece que vemos uma janela aberta para a creche e a pré-escola. Fiquei tão sensibilizada, que gostaria de dividir os “achados” com os leitores curiosos do Tempo de Creche.

Existe um ponto de partida para a conquista da brincadeira: o desenvolvimento da capacidade de agarrar um objeto. Elkonin explica que os sentidos do ser humano nascem praticamente prontos e estão num estágio de amadurecimento mais adiantado do que o aparato motor. A capacidade de enxergar um objeto curioso dentro do campo de visão do bebê é o primeiro estímulo mobilizador do desejo de coordenar os movimentos, porque, sem segurar o objeto é impossível empreender qualquer ação sobre ele, inclusive a brincadeira.

Então, a prontidão dos aparelhos sensoriais provoca no bebê o esforço de alcançar, agarrar e manusear os objetos. Mas isso não é fácil, porque mesmo conseguindo segurar o objeto, é preciso movimentá-lo de modo que a visão envie para o cérebro uma imagem tridimensional dele. Para movimentar o objeto de modo a colocá-lo dentro do campo de visão e expor suas diversas faces, requer um trabalho árduo para coordenar movimentos precisos.

Aí entram os adultos, que podem oferecer objetos interessantes, dispostos “quase” ao alcance do bebê, num ambiente propício à contemplação ativa e focada.

Segundo o autor russo, os primeiros movimentos são as palmadas nos objetos e, em seguida passam a agitá-los. Aos poucos, transferem de uma mão para a outra e passam a provocar oscilações (balançar o móbile, uma bola, uma bacia etc.).

Elkonin relata que os objetos novos e com propriedades diversas são os que mais interessam aos bebês.

Em relação à “novidade”, vale lembrar de Vigotski, para quem o meio e o amadurecimento das vivências predispõem as crianças a vivenciarem situações semelhantes de modos diversos ao longo da vida. Portanto, é válido revezar os objetos oferecidos aos bebês, garantindo um apelo renovado à investigação. Outro critério importante na escolha e oferta de brinquedos, é dar preferência àqueles que possuem múltiplas características, disparadoras de diferentes sensações: cor + forma + textura + reflexão de imagens + barulho + elasticidade + … enfim, segundo Elkonin, vale a pena selecionar objetos que provoquem diferentes percepções e pesquisas. Por exemplo, ao avistar uma bacia de inox, o bebê a observa atentamente. Esgotando as informações que obtém por meio da visão, se estiver amadurecido o suficiente, vai em busca do objeto para bater nele e segurá-lo. Ao segurar a bacia, a movimenta para perceber sua forma a partir de diferentes ângulos. Sente com a boca o sabor, a temperatura e a textura lisa. Joga o objeto diversas vezes no chão para descobrir as variantes sonoras que produz. Verifica as imagens refletidas no interior espelhado e, talvez no exterior. Depois de um tempo de explorações – com “movimentos reiterativos e encadeados”, satisfaz-se e deixa a bacia de lado.

O que tudo isso quer dizer?

Que “a atividade exploratória da criança adquire uma forma nova”, deixa de ser uma simples reação e passa a ser um comportamento. Os objetos “novos” vão sendo explorados a cada etapa, de acordo com o aparato motor, sensorial e cognitivo que a criança possui. Conforme se desenvolve, a criança passa a ver os mesmos objetos com olhar renovado.

O que isso tem a ver com a brincadeira?

Elkonin não considera essa interação lúdica com os objetos como brincadeira propriamente dita. Para o pesquisador, as crianças imprimem uma ação exploratória nos objetos para conhecê-los e inserir-se no universo dos adultos. Frequentemente percebemos que, ao manusear os objetos , os bebês procuram as expressões dos adultos conhecidos, buscando aprovação para o que estão fazendo.

Com isso, combinando os desenvolvimentos sensório-motor e de interação social, o uso social dos objetos começa a interessar os pequenos que passam a copiar os movimentos dos adultos ao utilizá-los.

E aí, é uma graça!

Primeiro os pequenos aprendem o esquema geral da ação desempenhada com o objeto, como por exemplo, levar a colher à boca, pentear o cabelo etc., mas, tanto faz se a colher e a escova estiverem viradas!

Aos poucos, ajustam as operações, percebendo a forma e a função dos objetos.

Desse modo, concluímos que são as ações dos adultos e/ou das crianças mais velhas que provocam e repertoriam a aprendizagem das crianças pequenas, num processo gradual de conquista de habilidades, percepções e ajustes, que leva à experimentação dos usos sociais e construção de significados. Para Elkonin, este é o jogo objetivado (“intermediado” pelos objetos).

Falando assim até parece complicado, mas se prestarmos atenção nos bebês e crianças até 18 meses, identificamos muitas das situações descritas por Elkonin. E, para ele, isso é o surgimento da brincadeira: um palito pode servir para imitar a ação de escrever da professora, e a almofada pode servir como um bebê que será posto para dormir no sofá.

No entanto, o pesquisador ressalta que neste estágio, o interesse da criança está na AÇÃO e não no significado dos objetos. Elkonin explica que se a criança se interessa por imitar a ação de pentear, se tiver uma escova à mão, pode até pentear o cavalo do livro de história ou o urso de pelúcia que está ao seu lado. Mas, na ausência de um pente, a criança pode usar uma régua para imitar a ação de pentear os próprios cabelos.

São os incríveis indícios da brincadeira que surgem no dia a dia das creches!

E a partir daí, como a brincadeira evolui?

O repertório linguístico e motor vai se instalando, o pensamento fica mais complexo e as ações das brincadeiras objetais vão se aperfeiçoando. Com a mesma xícara os pequenos bebem o chá, alimentam a boneca e servem suco na xícara da professora… todos estes eventos sem conexão!

As experiências relatadas por Elkonin são lindas porque parece que estamos vendo um vídeo do que acontece nas nossas escolas! A caminhada da brincadeira vai tomando corpo sem, no entanto, contar um uma narrativa que alinhe as diferentes ações.

Depois de seguir executando as ações lúdicas imitativas da vida real, a cronologia dos acontecimentos é percebida pelos pequenos e passa a ser incorporada na brincadeira: primeiro a boneca toma banho, depois veste a roupinha e, em seguida vai nanar. Para o psicólogo, “a lógica das ações lúdicas começa a refletir a lógica da vida da pessoa”.

E o que se segue? Quais trilhas a brincadeira persegue?

Elkonin diz que tudo muda a partir do momento em que a criança assume papeis. Entre dois e três anos de idade, a menina pode brincar de pentear a boneca com a régua, como vimos acima, e diz: mamãe penteia nenê. Nesta situação, ela assume um papel que não é o dela própria – o papel de mãe. Assim o jogo protagonizado começa e a construção de significados vai ficando mais complexa:

  • os “brinquedos temáticos” (bonecas, figuras de animais etc.) recebem nomes de personagens: filhinha, papai, vovô, cachorrinho etc.
  • “complica-se a organização das ações” em narrativas mais lógicas e reflexivas;
  • as ações lúdicas independem diretamente dos objetos;
  • a criança compara suas ações às dos adultos, assumindo nomes e funções, agindo como o adulto.

Finalmente, Elkonin conclui que “tudo isso mostra de maneira persuasiva que o jogo [ou brincadeira] aparece com a ajuda dos adultos e não de maneira espontânea”.

E assim, eu concluo deixando provocações:

  • Será que identificamos e observamos os estágios e os avanços nas brincadeiras dos bebês e crianças bem pequenas?
  • Paralelamente, refletimos sobre a oferta de objetos, brinquedos e cenários? Como o professor pensa sobre sua participação nos momentos de brincadeira?

Conhecer o desenvolvimento infantil inclui familiarizar-se com o desenvolvimento da brincadeira… e apaixonar-se por ela!

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PARA SABER MAIS…

Esta postagem está apoiada no capítulo 4 “Origem do jogo na ontogenia”, do livro Psicologia do Jogo, de Daniil B. Elkonin, publicado originalmente em Moscou em 1978. A minha edição foi publicada pela Editora Martins Fontes em 2019.

 

 

Daniil B. Elkonin  (1904 – 1984) foi um psicólogo russo, discípulo de Vigotski, que contribuiu para as áreas da Psicologia e da Educação.  

Em algumas situações, tomei a liberdade de me referir ao termo “jogo” abordado por Elkonin, como “brincadeira”, aproximando este conceito àquele utilizado em nossos referenciais teóricos e currículos.

 

Leia mais sobre a brincadeira nas postagens: 

2 comments

Texto riquíssimo, exemplificando como acontece o desenvolvimento do brincar. O brincar não nasce com a criança, é fruto da ação social, da intervenção do adulto, por isso, a escola é um ambiente que vai interferir diretamente neste aprendizado através da intencionalidade do professor.

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