Quais são as brincadeiras de origem africana brincadas no Brasil e nos países africanos de língua portuguesa?
Um grupo de pesquisadores se interessou pelo tema e nos presenteou com o Catálogo de jogos e brincadeiras africanas e afro-brasileiras, um linda publicação gratuita, que reúne brincadeiras tradicionais do Brasil, de Angola , de Cabo Verde, da Guiné-Bissau, de Moçambique e de São Tomé e Príncipe.
As organizadoras do e-book (livro digital) são Helen Pinto, Luciana Soares da Silva e Míghian Danae. O autor das ilustrações (um deleite para os olhos!) é Rodrigo Andrade. Participaram do levantamento das brincadeiras: Pedro Nguvu (Angola), Luliane Sousa (Brasil), Jacica Fernandes (Cabo Verde), Yacine Tavares (Guiné-Bissau), José Maye (Guiné Equatorial), Hercinia Wasse (Moçambique), Quezia Miranda (São Tomé e Príncipe). A editora, que realizou o trabalho primoroso de edição do livro é a Aziza, que aliás, possui diversas publicações de literatura infantil africana para contar – bem contada! – a história do povo negro de ontem e de hoje.
Na introdução e no final do Catálogo existe uma fundamentação teórica sobre o brincar e o enfrentamento das desigualdades sociais que vale a pena ser estudada e discutida em encontros formativos – fica a dica 😉
Veja um trecho:
Quando nos deparamos com uma pessoa grávida, uma das primeiras perguntas que lhe fazemos é: “É menino ou menina?”. Se se tratar de uma relação inter-racial entre negros
e brancos, o questionamento que irá pairar no ar é se a criança vai ser negra ou branca. Os desejos de felicidade são grandes e, às vezes, com o intuito de proteger a criança, projetamos nela as benesses e mazelas da sociedade. Nesse sentido, frases como “Que venha com saúde, mas criar meninos é mais fácil” e “Se vier negra não precisa ser tão escura” são projeções que chegam até a criança antes mesmo de ela vir efetivamente ao mundo. A subjetividade dessa criança já está sendo traçada.
Quando uma criança vem ao mundo, é pelo brinquedo, pelo jogo e pela brincadeira que ela será socializada, que será apresentada às regras e aos códigos sociais. As identidades passam a ser moldadas, construídas, e são os adultos que propiciam e/ou negam tais experiências.
Os caminhos são múltiplos, passando pela cor dos objetos, pelos tipos de brinquedo e experimentações e pelas castrações corporais.
Importante compreender que, em uma relação dialética humano/sociedade, o novo membro, no caso a criança em processo de socialização, interioriza um mundo já posto, que lhe é apresentado com uma configuração já definida, construída anteriormente à sua existência. Assim, interagindo com outras pessoas, a criança aprenderá atitudes, opiniões e valores a respeito da sociedade ampla e, mais especificamente, do espaço de inserção de seu grupo social. (pág. 65)
Agora, leia a entrevista realizada com a Míguian D. F. Numes e Helen Pinto, autoras, entenda o percurso que levou à elaboração do catálogo e acesse o link para baixá-lo gratuitamente.
Tempo de Creche – Poderia falar um pouco sobre a pesquisa que levou à produção do Catálogo de jogos e brincadeiras Africanas e afro-brasileiras?
Míghian e Helen – Em outubro de 2020, ganhamos o edital Equidade Racial na Educação Básica, promovido pelo Centro das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT. Escrevemos um projeto de pesquisa aplicada que tinha como uma das fases a produção do material que originou o livro. A pesquisa foi realizada por estudantes universitários/as dos países da integração que tem o português como uma das línguas oficiais, a saber, Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique e São Tomé e Príncipe,. Com exceção do estudante guino-equatoriano, todos/as os/as outros/as estudantes estão matriculados/as na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), no campus dos Malês em São Francisco do Conde (Bahia). Foram realizadas entrevistas em formato remoto com mulheres e homens entre quarenta e sessenta anos de cada país da integração, coletando as brincadeiras que fizeram e fazem parte do seu cotidiano.
Tempo de Creche – Depois de vivenciar as experiências da pesquisa para a elaboração do Catálogo, como você vê a presença da cultura Africana e afro-brasileira no cotidiano das crianças pequenas brasileiras?
Míghian e Helen – Muito embora nossa intenção não tenha sido comparar os jogos e brincadeiras que temos no Brasil com os demais países da integração, ao longo da pesquisa, percebemos o quanto as culturas africanas estão presentes nos jogos e brincadeiras do cotidiano das crianças brasileiras, ainda que esta presença não seja percebida ou estimulada nas redes de ensino. Muitas das brincadeiras realizadas aqui no Brasil, também eram realizadas nos países africanos, havendo apenas algumas regras e/ou nomes diferentes, como por exemplo, a brincadeira Bica Bidon de Angola que é semelhante a uma das versões do esconde-esconde brasileiro, ou a brincadeira “Malha” de São Tomé e Príncipe que se assemelha a amarelinha que brincamos aqui no Brasil. Esta relação fortalece a nossa identidade racial e a sensação de pertencimento, fazendo com que crianças conheçam melhor sua história, o que colaborar com a implementação da educação das relações étnico-raciais nas escolas. Além disso, já há algum tempo, temos estudado sobre como o que Azoilda Trindade (2010) chama de “valores civilizatórios africanos e afro-brasileiros está muito presente na vida das crianças pequenas brasileiras que são atendidas nas redes municipais de educação infantil, mesmo porque as mulheres negras que ocupam o cargo de professora de educação infantil fazem com que estes valores sejam celebrados.
Tempo de Creche – Que bom saber disso! Agora, com a pesquisa e a publicação, os educadores poderão destacar e valorizar estas origens, evidenciando seu valor cultural.
Aproveitando esta temática, você poderia sugerir estratégias práticas para que os educadores de crianças pequenas pesquisem e trabalhem com elementos qualificados da cultura e da estética africana e afro-brasileira?
Míghian e Helen – É importante a formação continuada em temas como educação das relações étnico-raciais e a busca por conhecimento de legislações como a Lei 10.639/03 e a Lei 11645/08, por exemplo. Além disso, buscar informações sobre a qualidade de livros e materiais pedagógicos que tratam das temáticas constitui-se parte do ofício de uma educadora comprometida com a educação para as relações étnico-raciais, que não deve ser visto como um tema isolado dos demais temas que são trabalhados na escola, mas sim, um tema necessário para a educação de qualidade, que não existe sem racismo. Importante também é observar se as pessoas/instituição/grupo/associação que ministram os cursos incluem pessoas negras em seus quadros, como um modo de termos um quadro de formação mais amplo, plural. A partir dessa formação do olhar, acredito que as professoras vão ficar cada vez mais confiantes em escolher os materiais para o trabalho com a educação das relações étnico-raciais. Formação e informação é o caminho, de modo bem objetivo.
Tempo de Creche – Perfeito! E acreditamos que o Catálogo é um ótimo material para enriquecer as dinâmicas formativas dos educadores. Em relação às crianças da primeira infância, para qual faixa etária o material é mais indicado?
Míghian e Helen – O Catálogo possui brincadeiras que podem ser realizadas por todas as faixas etárias. Um dos intuitos do catálogo é servir como material pedagógico para educadores/as a refletirem sobre a produção das propostas pedagógicas e como estas colaboram com a produção do currículo que elas oferecem às crianças desde muito pequenas. Ressaltamos que as brincadeiras podem ser adaptadas de acordo com a faixa etária e a necessidade da turma em questão; o que é importante para nós, também, é que as educadoras possam compreender que este catálogo abriga em sua confecção a potente ideia do trabalho coletivo, escuta às pessoas mais velhas e um cuidado com a estética, de modo a alcançar as crianças brasileiras de variadas formas. Ao ter isso em mente, esperamos que as educadoras possam reconfigurar esse espírito de trabalho em suas próprias turmas, ouvindo as crianças e celebrando suas diferenças, o que acreditamos ser possível de ser feito desde que elas são muito pequenas. Ao dizer isso, queremos enfatizar que, ainda que as professoras não realizem as brincadeiras tais quais elas aparecem no Catálogo, importa muito para nós que elas compreendam a importância de que as crianças tenham contato com referências que se comuniquem com elas a partir de seu pertencimento étnico-racial e, no caso das crianças brancas, com a possibilidade de apreciar suas/seus colegas negras/os como pessoas.
Tempo de Creche – Certo. É preciso trazer todos estes aspectos do trabalho de forma intencional ao propor as atividades para as crianças.
Você poderia dar dicas práticas para que os/as professores/as utilizem os conteúdos do Catálogo nas propostas cotidianas voltadas às crianças?
Míghian e Helen – Uma das sugestões que fazemos é que, antes de realizar qualquer brincadeira com as crianças, seria importante apresentar o país de origem da brincadeira, mostrando no mapa-múndi onde o país está localizado, para assim contextualizar a brincadeira escolhida e fazer com que o brincar seja a base para o aprendizado de saberes relacionados às culturas africanas e afro-brasileiras; cabe reforçar que é importante de, nesta apresentação, não reforçar estereótipos. Isso só será possível se a própria professora puder avaliar o que sabe sobre o país e como se relaciona com este conhecimento. Vale dizer, ainda, que o Catálogo nasceu com a intenção de situar que a brincadeira não é coisa de criança e sim de todas as pessoas. Sendo assim, estimulamos que as educadoras possam brincar junto com as crianças e não apenas apresentar a brincadeira para as crianças brincarem, levando em consideração a importância que nós, autoras do catálogo, damos à participação e imersão nas brincadeiras para uma aprendizagem significativa.
Tempo de Creche – Como os leitores do Tempo de Creche podem fazer o DOWNLOAD GRATUITO do Catálogo de jogos e brincadeiras africanas e afro-brasileiras?
Míghian e Helen – O download do Catálogo pode ser realizado no site da Aziza editora – https://azizaeditora.com.br/. Para nós. é importante dizer que a Aziza foi uma editora parceira em todos os momentos da pesquisa, desde a época da recolha do material.
O planejamento é necessário, pois nos ajuda a avaliar nossa prática pedagógica
Sim, Laiena: o planejamento, a observação pautada, o registro, a reflexão, o replanejamento…. infinitamente!