O que falta na observação e no registro pedagógico?

O que falta na observação e no registro pedagógico?

Será que a gente consegue saber tudo sobre observação, registro e reflexão?

Não! Realizar uma observação proveitosa e um registro que alimente a reflexão exige aperfeiçoamento constante.

Frustrante, não é mesmo?

Mas essa é a essência da prática pedagógica que qualifica a atuação do professor e promove seu desenvolvimento profissional.

Lembro que, depois de dois anos participando de um curso sobre registro com a Madalena Freire – um privilégio que guardo como tesouro, parece que saí com mais dúvidas do que quando entrei! No final da jornada com a mestra, cortar o cordão umbilical não foi fácil: como resolver as dúvidas que surgem no dia a dia? Como encerrar esse processo que parece aumentar a inquietação a cada encontro? Quando a turma partilhou esses sentimentos com a Madalena ela afirmou: “a intranquilidade nunca vai acabar!”. E, por isso, ela considerava sua missão cumprida.

O bom professor precisa buscar aperfeiçoamento constantemente. Aliás, todo bom profissional necessita mais inquietude do que tranquilidade e acomodação.

Nesse sentido, quero provocar meus leitores com essa postagem: o que falta para você fazer uma boa observação e um registro frutífero?

Hoje vou abordar a busca por um “olhar neutro”.

Certamente não existe neutralidade em nada que o ser humano faz. O que somos e fazemos está apoiado na nossa história e características. Mas, fazer observações que já trazem um “saber estabelecido”, não fornece elementos de realidade. Olhar a cena pedagógica “já sabendo” o que acontece ou cego pelo “sonho do planejamento”, como diz a Madalena, não nos faz escutar de fato as crianças.

Por isso, uma provocação que coloco aos meus alunos-professores é: você está olhando os fatos/evidências ou já está interpretando as cenas que observa?

Se você observa as ações das crianças e registra a análise no lugar de fatos, na hora de retomar os registros, nunca poderá repensar os acontecimentos com calma e “isenção”. Suas anotações e imagens não trarão fatos e evidências e sim interpretações e análises feitas no momento conturbado e agitado da atividade.

Uma cena pedagógica para pensar…

Uma professora de crianças de 2 a 3 anos propôs uma atividade de argila com água. No espaço propositor, ela apresentou pedaços de argila mergulhados em bacias com água. Disponibilizou também bacias menores e as pás do tanque de areia.

A professora fez vídeos e anotações e trouxe os registros para discutirmos no grupo de estudos.

As anotações da professora traziam as seguintes notas:

“Fulana percebeu que podia pintar o corpo com a água tingida pela argila.”

“As crianças passam a água e a argila no corpo para pintar o próprio corpo.”

“Fulano pega a água colorida de argila com a pá, transfere para sua bacia e depois joga no corpo para se pintar.”

A professora fez a reflexão da prática e entendeu que as crianças estavam interessadas em se pintar. Desse modo, concluiu que poderia planejar atividades de pintura para os dias de calor, com as crianças vestindo menos roupa e, assim, favorecendo a pintura do corpo. Também poderia apresentar as pinturas corporais indígenas e africanas por meio de imagens e vídeos para inspirar.

Foi uma boa reflexão, mas não estava completa. Então, fomos analisar os vídeos da atividade. Aproveito para valorizar a ferramenta do vídeo como uma das formas mais poderosas de registro de evidências para embasar reflexões. As gravações que focam as ações de pequenos grupos de crianças, por 2 a 4 minutos, revelam recortes fieis dos acontecimentos.

Num dos vídeos, uma menina pegava a água de argila com a pá e ora jogava de volta na bacia, ora derramava nos pés e ora deixava escorrer no braço. Ao fazer isso, observava atentamente o caminho da água.

Outro vídeo mostrava um menino que transferia o liquido da uma bacia para a outra, testando diferentes alturas no transbordo. Às vezes, o menino também despejava o líquido no próprio corpo.

Algumas cenas apresentavam crianças passando as mãos nas partes pintadas do corpo, atentas às marcas produzidas.

Resumindo a história, as anotações realizadas durante a atividade não trouxeram evidências e sim a análise “apressada”, realizada no momento da atividade.

Ao observarmos atentamente os vídeos e exercitarmos a simples descrição das ações das crianças (o que elas fazem?), percebemos que, além de sentir a água de argila no corpo, as crianças estavam interessadas no transvase e, em especial, no modo como a água passava de um lugar para o outro. Gestos, olhares e expressões de algumas crianças nos levaram a interpretar que elas queriam “sentir no corpo” a pressão da água caindo e os caminhos que ela percorria no ar e nas bacias.

A reflexão trouxe, então, possibilidades investigativas diversas daquelas imaginadas apressadamente, e poderiam ser aprofundadas em novas propostas.

Conclusão: as anotações fiéis à realidade, descritivas dos gestos, olhares e falas das crianças, são fundamentais para fornecer informações proveitosas e férteis aos professores, que, desse modo, podem fazer uma escuta verdadeira do ocorrido.

Mais uma cena do cotidiano…

Outra atitude que compromete a qualidade dos registros é o olhar tendencioso para enxergar somente as expectativas geradas no planejamento.

Uma professora de crianças na faixa de 2 anos planejou uma proposta de modelagem a partir do personagem de um livro querido da turma (Pedro vira porco-espinho, de Janaina Tokitaka).

A proposta foi: vamos fazer o nosso porco-espinho?

No encontro de reflexão conjunta, retomamos os registros da docente e analisamos seus apontamentos:

“Fulano explorou bastante a argila e gostou de brincar com ela. Fez uma bolinha e eu perguntei se era o porco-espinho. Ele respondeu que sim.”

“Fulana demorou para fazer o porco-espinho, mas, no final, me entregou sua produção”.

“Outra fulana gostou de fazer um grande porco-espinho e ficou atenta para pegar os restos de argila deixados pelos colegas.”.

Depois de expor as fotos e os vídeos da atividade, perguntei para as professoras do grupo: o que as crianças fizeram?

Algumas professoras responderam: exploraram a argila e fizeram suas produções.

Respondi: gostaria de saber exatamente o que as crianças fizeram, quais gestos usaram, como interagiram com o material e com os colegas.

As anotações não traziam essas informações.

Depois, perguntei para a professora das crianças quais evidências (fatos) a levaram a concluir que as produções da turma eram porcos-espinhos.

A professora também não tinha essa informação.

Retomamos alguns dos vídeos da atividade. A professora gravou cenas que apresentavam um panorama geral da proposta, sem a intenção de registrar o que acontecia especificamente com cada grupo de crianças, diferentemente do primeiro caso abordado nesta postagem.

Mesmo assim, insistimos na observação dos vídeos, pausando em certos momentos e ampliando algumas imagens. A insistência compensou e pudemos perceber algumas ações das crianças que alimentaram nossas reflexões.

Verificamos que, apesar da pouca intimidade com a argila, a turma fez explorações amassando, quebrando, apertando, batendo, juntando partes e despedaçando. Ações esperadas para os primeiros contatos com o material.

Nas cenas pudemos ver a professora ansiosa por “cumprir” o planejamento, recolhendo as “bolinhas” de argila produzidas e guardando-as para secar. A intenção era que as crianças pintassem os “porcos-espinhos” em outra oportunidade.

Em nenhum dos vídeos analisados observamos indícios de que as crianças intencionalmente modelavam algo específico. No lugar de produzir o personagem do livro ou qualquer outro objeto, elas exploraram as possibilidades da argila e brincaram com ela.

Falavam:

“Olha”, apontando para seus conjuntos de massas;

“Dá mais?”, pedindo material para os colegas;

“Tá grande”, apontando para uma montanha de argila;

“Caiu”, quando os empilhamentos desmoronavam;

Não se ouviu a palavra “porco-espinho”, já conhecida pelos pequenos.

Também não vimos as crianças preservando ou “entregando” nenhuma produção para a professora.

Assim concluímos que as crianças pesquisaram o material e, surpreendentemente, pela a pouca experiência que possuíam, exploraram a tridimensionalidade da argila.

Conclusão: a representação por meio da modelagem ainda está distante. Pensamos nas representações realizadas por meio do desenho e do faz de conta, que se entrelaçavam com a modelagem, e entendemos que estas também estavam no início.

Refletindo sobre os próximos passos, planejamos oferecer mais oportunidades para trabalhar a argila sem economizar na quantidade e, assim, continuar favorecendo as construções tridimensionais.

Combinamos que, quando a professora percebesse que as crianças produziam algo que gostariam de preservar, ela recolheria as produções e anotaria o nome da obra (se isso surgisse espontaneamente).

Quanto às representações do personagem porco-espinho, seria mais natural começar a explorar no faz de conta. Uma possibilidade seria produzir uma almofada de porco-espinho parecido com o do livro e colocá-lo entre os objetos do faz de conta. Quando a brincadeira simbólica está no início, a atribuição de significados aos objetos também está começando. O professor pode dar uma “ajudinha” no surgimento de narrativas de faz de conta, oferecendo objetos mais parecidos com o real.

Concluindo…

As duas situações formativas descritas só puderam ocorrer por conta do vínculo estabelecido entre a formadora (eu ;)) e as professoras, e o amadurecimento do grupo que compreendia o valor de compartilhar experiências e ouvir as colegas. O desejo de pensar junto e aprender dominava os nossos encontros.

Voltando às provocações iniciais, é importante sempre retomar os registros e fazer uma análise: você descreveu fatos ou registrou interpretações e análises?

Você utilizou palavras genéricas como “as crianças interagiram, se divertiram, aproveitaram, exploraram…”, ou você descreveu as situações como precisão (exemplo: “o menino pegou a boneca, colocou na mesa e colocou a mamadeira na boca. Em seguida, entregou a mamadeira para a fulana, que aceitou o convite e também colocou na boca da boneca”).

Ao observar as crianças, seu olhar é o mais neutro possível, acolhendo gestos, ações e falas reais?

Além de refletir sobre a cena pedagógica, o professor avança na sua prática ao pensar sobre a qualidade do próprio registro: meu registro me alimenta? O que me ajudaria a pensar sobre a ação pedagógica e não foi registrado? O que foi registrado em excesso e que não me ajuda em nada?

Arrisque fazer mudanças na forma de realizar suas anotações, alterar o ângulo das fotos e as situações filmadas e, depois, retome todo o material e avalie o quão útil ele ficou. Aos poucos você se surpreenderá com a facilidade de enxergar de fato as crianças e entender suas ações, conquistas e necessidades.

Assim, cada vez mais, o planejamento das propostas vai brotando encadeado em sequências que instigam e provocam as crianças a partir das suas curiosidades e necessidades. Assim também, a docência vai ficando mais prazerosa e qualificada.

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