A Educação Infantil é o início da vida escolar de uma criança. O primeiro passo fora de casa para viver o coletivo. E a primeira experiência dos pais com a vida escolar dos filhos. Professores, educadores e diretores reconhecem essa responsabilidade? Essa questão preocupa a equipe do Tempo de Creche. Por isso convidamos o professor especialista em Educação Infantil e assessor da Organização Mundial para a Educação Pré-Escolar – OMEP, Vital Didonet, para conversar sobre este tema.
Tempo de Creche – Como o governo está vendo os pais das crianças na primeira infância? Existe preocupação em formar pais de futuros alunos?
Vital – As políticas públicas respeitam muito a privacidade do pai ou da mãe, e dão elementos para que, dentro de suas condições, sejam os melhores com suas crianças. Quando a criança começa a frequentar uma instituição de educação infantil, acrescenta-se algo novo à sua vida. Os pais se tornam pais de uma criança que tem relacionamento com outras crianças, num ambiente mais amplo do que o familiar e comunitário. Seus filhos conhecem outras crianças e fazem novos amiguinhos, tem contato com a literatura, a dramatização, a música e as artes, fazem experiências com novos materiais com os quais desenvolvem a criatividade, adquirem conhecimentos da natureza, correm, pulam e brincam em espaços abertos e mais amplos do que o de sua casa, e realizam outras atividades às quais não têm acesso em casa. Os pais não podem ignorar esta dimensão sócio educativa da vida da criança e têm que compreender que o filho, a partir desse momento, está com a cabeça ligada em muitas outras coisas. Ser pai e mãe de um filho nesta dimensão socioeducativa é bem diferente de sê-lo apenas na dimensão doméstica.
Tempo de Creche – Hoje se fala muito na participação da família na escola e até em avaliação conjunta. Mas a escola de fato compreende as famílias, respeita suas singularidades e compartilha com elas as aprendizagens das crianças? Ainda estamos engatinhando nas trocas entre famílias e escolas?
Vidal – Concordo com vocês que estamos engatinhando na relação pedagógica com a família. Existem relações bastante antigas, em que a família é chamada para participar de eventos, de alguns passeios realizados em conjunto e de reuniões administrativas para falar sobre a escola. São relações administrativas. Falta a dimensão pedagógica. A Lei de Diretrizes Básicas – LDB – diz que a creche é complementar à ação da família. O que significa complementar? Ampliar o que a família faz, aquilo que já existe na vida e experiência da criança. Você só complementa uma receita se houver ali os outros ingredientes. A creche acrescenta a diversidade e a complexidade do conhecimento, de vivências sociais, de manifestação das emoções. A relação com a família é fundamental. Estamos engatinhando na relação pedagógica, com boas porém poucas experiências sólidas e prolongadas, que favorecem a interação de culturas, de linguagens, de valores, de contribuições.
Tempo de Creche – Como as políticas públicas veem a participação da criança pequena na sociedade?
Vital – No Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, aprovado em 1990, registrou-se o direito do adolescente participar de decisões que envolviam sua vida. Foi um avanço em relação ao passado. Mas ainda tímido, porque omitiu o direito da criança também ter voz naquilo que lhe diz respeito. Agora, o Marco Legal diz que a criança, a partir da primeira infância, tem direito e condições de participar, por meio de suas diferentes linguagens. Importante é o adulto entender, decodificar, as expressões da criança. A criança pequena é capaz de falar sobre sua vida, sua família, a escola, seu bairro, traz questões com as quais ela está insatisfeita, o que gosta ou gostaria de ter. Estes são dados relevantes para planejar as políticas públicas. Uma boa política para a Primeira Infância ouve as crianças e deve ser capaz de atender aos seus desejos e expectativas, além de suas necessidades, que conhecemos pelas ciências e pela prática profissional. Será que estamos atendendo essas expectativas das crianças?
Vou contar um exemplo sobre a participação das crianças. No primeiro semestre (de 2016) aconteceu, aqui em Brasília, o quarto ano de escuta das crianças da educação infantil pública. O projeto se chama Plenarinho e foi criado pela Secretaria de Educação para as crianças serem coautoras do processo pedagógico, cidadãs opinando sobre sua cidade ou a zona rural em que vivem. Esta última edição abordou a cidade, o lugar em que moram. As crianças desenharam, pintaram, fotografaram e conversaram sobre a sua cidade ou o sítio em que vivem e o que elas gostariam que tivesse neles. Fizeram maquetes, desenhos e modelagens, que foram expostos no saguão da Câmara Legislativa. As crianças falaram sobre o que viam, sentiam e gostariam que existisse. Os professores anotaram, colocaram os registros num envelope e levaram para o presidente da Assembleia Legislativa do Distrito Federal. O presidente declarou que esse material possui dados importantes para fazer projetos de lei com com vistas a melhorar as condições de vida nos territórios em que as crianças vivem. O primeiro ano do projeto teve o tema A minha escola, como eu a vejo, o que eu gosto e o que não gosto nela. O segundo abordou o que “eu aprendo” e o que gostaria de aprender. No terceiro ano, trabalhou-se as contribuições das crianças para o projeto político pedagógico da escola.
Ao levar as opiniões das crianças da pré-escola (4 a 6 anos) para os deputados da Assembleia Legislativa, elas são respeitadas como cidadãs. Isto é só um exemplo que também avança a valorização da escuta da criança, a visão de sujeito capaz de dar uma opinião habilitada, com conhecimento de causa, dentro do olhar infantil.
Tempo de Creche – O senhor conhece experiências bem-sucedidas de participação das famílias nos projetos da Educação Infantil?
Vidal – No Uruguai o psicólogo Victor Guerra desenvolve um trabalho muito interessante. Ele leva os avós das crianças para contar histórias na creche. Acompanha a narrativa, depois conversa com as crianças e também assessora os avós. Com essa ação, mais do que trazer um personagem da família para a escola, protege-se e perpetua-se uma cultura que sustenta a sociedade. Os avós trazem e falam sobre brinquedos que tinham na infância e brincam de novo. É uma articulação com a família muito maior do que o âmbito administrativo.
Outro exemplo é a Escola de educação infantil Vivendo e Aprendendo, em Brasília. É uma associação de pais e professores, cuja diretoria formada por representantes dos dois grupos, é eleita pela assembleia e renovada periodicamente. As três áreas – administrativa, financeira e pedagógica – são objetos da análise e do planejamento conjuntos. Reuniões de todos os pais e professores são frequentes e sempre incluem debates e falas sobre temas pedagógicos. Dessa forma, a participação dos pais se torna elemento constitutivo da qualidade da educação de seus filhos, contribui para ampliar a percepção dos professores sobre os processos de aprendizagem das crianças e os pais se tornam aprendizes da pedagogia da infância.
Tempo de Creche – No livro Movimento e Experimentação na aprendizagem de crianças pequenas* (tradução livre) a autora sueca, LIselott Olsson, estudiosa da Educação Infantil, diz que o mundo tem que entrar na creche e a creche tem que entrar no mundo, num sentido literal. Segundo ela, se um túnel está sendo construído no bairro, este túnel tem que entrar na escola como um tema. Da mesma forma que a produção das crianças, o processo de aprendizagem que fazem sobre o túnel precisa sair da escola e aparecer na comunidade. Assim, a escola passa a ser um ator político e não alvo de políticas. O senhor concorda?
Vidal – Sim, as crianças se ligam no que está acontecendo no entorno delas. Se estão fazendo um túnel, um viaduto na cidade, e isso está atrapalhando o trânsito, vamos trabalhar essa questão na creche. Vamos fazer uma maquete do viaduto, colocar os carrinhos e ônibus. Você vai recriando com as crianças aquilo que está acontecendo no seu entorno. Depois vamos verificar se o trânsito melhorou. Desse modo, a criança se torna um sujeito crítico, com capacidade de opinar sobre decisões que afetam sua vida, para melhor ou para pior. As crianças crescem com consciência do que está acontecendo. É muito mais cidadania e inteligência prática.
A interação do mundo real com as vivências de aprendizagem nas instituições de educação infantil tem que acontecer sobre situações do cotidiano. Por exemplo, na África os bebês vão para a roça nas costas das mães e acabam sendo envolvidos nas questões da natureza, do plantio, do cuidado das plantas e até de escutar os sons. Nos Países Andinos, as crianças indígenas também participam de experiências como essas. É um valor cultural os pais levarem as crianças para o mundo de suas vivências além das quatro paredes da casa ou do quintal.
Tempo de Creche – É comum pensarmos na figura da mãe e da professora na relação direta com a criança pequena. Como a sociedade pode garantir um espaço para a convivência com o pai?
Vital – Hoje em dia, com raras exceções, não é possível um trabalhador ou uma trabalhadora levar seu filho para o ambiente de trabalho. O pediatra não leva seu filho para o consultório, nem o professor do ensino médio leva o filho pequeno para a sala de aula. Quando eu comecei a trabalhar no Ministério da Educação, em políticas públicas, me lembro que meu filho me perguntava: pai o que você faz?
Eu respondia: eu faço reuniões.
– O que é reunião?
Era difícil explicar para ele o que eu fazia. Ele não tinha noção do que acontecia comigo durante 8 ou 10 horas do meu dia. As crianças estão muito fora do mundo real dos seus pais. Eles os levam para a escola e trazem de volta para casa ou até pagam transporte escolar, mas não entram no ambiente de aprendizagem dos filhos nem estes no ambiente de trabalho dos pais. Isso gera uma ruptura entre as duas gerações no que diz respeito às vivências no cotidiano. Considero saudável para ambos criar meios de interagirem.
Um ponto importante do Marco Legal da Primeira Infância foi a licença paternidade de 15 dias. Com isso, os pais podem ter uma experiência de convivência mais íntima e intensa com o bebê. Desse modo eles vão se ligar muito mais à criança. Eu acredito nos benefícios de pais e crianças viverem estes 15 dias com afeto, com carinho e presença: segurando o bebê no colo, ajudando a dar banho, vendo com serenidade a mamada, atendendo o bebê quando ele sente cólica. Depois o pai vai sair para trabalhar muito mais ligado à condição da paternidade e mais motivado para o trabalho, porque sabe que, em casa, tem esta criancinha que ele pegou no colo, deu banho, sorriu para ele e o espera.
Tempo de Creche – Gera marcas que são as permanentes. Às vezes se faz tão pouco e se transforma uma vida inteira!
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PARA SABER MAIS…
Vital Didonet é Professor Especialista em Educação Infantil, licenciado em filosofia e em pedagogia e mestre em educação.
Atuante na área das políticas públicas de educação, assessor da Organização Mundial para a Educação Pré-Escolar – OMEP, membro do Conselho Técnico do Programa A Primeira Infância vem Primeiro, da Fundação ABRINQ, do Conselho Consultivo da OSCIP Berço da Cidadania, da Organização Mundial para a Educação Pré-Escolar – OMEP Brasil e da Associação Brasileira de Estudos sobre o Bebê – Abebê.
→ O Programa Criança Feliz, do governo federal, foi um assunto abordado na conversa com o professor Vital Didonet, comentando que a família enquanto primeira instância de cuidado, educação e proteção à criança pequena, até recentemente, estava ausente das políticas públicas.
A inovação começou com programas como o PIM – Prmeira Infância Melhor, do Rio Grande do Sul, Família que Acolhe, de Boa Vista/Roraima, Mais Infância, do Ceará, Mãe Coruja Pernambucana, de Pernambuco, Arapiraca garante a Primeira Infância, de Arapiraca/Alagoas, São Paulo Carinhosa, da cidade de São Paulo entre outros.
O contexto familiar é fundamental no desenvolvimento das crianças porque o primeiro vínculo dá estabilidade, segurança afetiva e motivação, que garantem a base da construção das relações humanas. É na família que o bebê tem as primeiras experiências com o mundo. Assim, a família precisa ter o apoio das políticas públicas, principalmente aquelas que se sentem abandonadas, sem estrutura para dar melhores condições às suas crianças.
O Programa Criança Feliz não é um substituto da Educação Infantil, que se dá no espaço público, com profissionais e um projeto pedagógico. Ele consiste em visitas domiciliares de profissionais e será flexível para atender as características de cultura e de geografia de cada localidade.
Informações sobre acesso ao Programa Criança Feliz e/ou PIM como referência
→ Víctor Guerra é psicólogo, psicanalista, supervisor de projetos de trabalhos na primeira infância no Uruguai. Possui vasta experiência clínica com pais-bebê. Coordenou e realizou cursos de formação em diversos países. Recomendamos a leitura do texto disponível para download (em espanhol): INDICADORES DE INTERSUBJEVIDAD (0-2 AÑOS) EN EL DESARROLHO (desenvolvimento) DE LA AUTONOMIA DEL BEBE.
→ *O livro mencionado nessa entrevista encontra-se em língua inglesa e seu título original é Movement and Experimentation in Young Children’s Learning – Deleuze and Guattari in early childhood education, de Liselott Mariett Olsson. Foi publicado em 2009, pela editora Routledge, e pertence à coleção Contesting Early Childhood.
→ Leia mais sobre a relação entre escolas e famílias nas postagens:
- Diálogos sobre relações: famílias e creches unidas na educação I
- Diálogos sobre relações: famílias e creches unidas na educação II
- Diálogos sobre relações: famílias e creches unidas na educação III
- Diálogos sobre relações: famílias e creches unidas na educação IV
- Diálogos sobre relações: famílias e creches unidas na educação V
- Diálogos sobre relações: famílias e creches unidas na educação VI
- Diálogos sobre relações: famílias e creches unidas na educação VII
de autoria da Tania Fukelmann Landau - Anamnese Cultural das famílias: identidade e afeto
- Datas Comemorativas: muito além das festas!