Hora da chegada, hora do café, lavar as mãos, fazer xixi, escovar dentes, guardar a mochila, arrumar-se para o pátio, participar das propostas de atividade, lavar as mãos novamente, beber o suco, almoçar…. ufa! Uma sucessão de incansáveis etapas do dia, marcadas pelo tempo do relógio, pelo tempo de cada criança e pelo tempo dos professores e equipes de apoio da escola. E, no final de tudo, a tal da intenção pedagógica por trás de cada atitude e de cada fala.
É possível lidar com tudo isso? É preciso ser um professor herói?
Vamos por partes!
O que é ensinar com intenção?
Educação com intenção parte de professores comprometidos com as crianças. É falar de um profissional ativo e nunca passivo a respeito daquilo que faz. Na prática, é dizer que se o professor deixa a turma “brincar livremente”, ele o faz com a intenção de trabalhar, por exemplo, as relações de grupo entre as crianças, sem a interferência do adulto. É um momento escolhido para brincar livre, que, ao se repetir, proporciona ao grupo elementos que aprofundam as tais relações. Nesse sentido, o professor munido de intenção aumenta ou diminui a quantidade e a diversidade dos materiais oferecidos; procura organizar os espaços de modo a favorecer a formação de grupos maiores ou menores de crianças; propõe regras para compartilhar brinquedos etc., etc., etc.!
Trabalhar com intencionalidade significa tomar decisões deliberadas, com objetivo e propósito. Sejam as decisões tomadas durante os momentos da rotina, sejam as propostas de experiências nas atividades. A intenção está em tudo, e o professor precisa se dar conta disso:
- quando planeja e organiza materiais e ambientes,
- nas experiências que propicia às crianças,
- nas maneiras de planejar a rotina,
- na escolha das palavras, frases e perguntas,
- na forma como favorece o agrupamento dos pequenos (grandes grupos, pequenos grupos, em pares, separando as panelinhas, em relação individual com o professor, com ou sem a interferência do educador…),
- quando direciona as experiências ou quando segue os interesses e propostas dos pequenos.
Assim, a prática pedagógica parte da interação com as crianças no cotidiano, nos desafios propostos e ao refletir sobre as ações pedagógicas: quando é o momento de intervir? Como formular as perguntas? Quando perseguir os interesses dos pequenos e quando propor experiências e aprendizados independentemente dos interesses do grupo?
Será que tocamos num ponto delicado?
Crianças aprendem experimentando.
Elas precisam viver de corpo e alma as situações para construir seus aprendizados. Mas isso quer dizer que a Educação Infantil se compõe exclusivamente de conteúdos apontados por elas?
Obviamente não!
O adulto, profissional e habilitado, é o detentor das possibilidades, do acesso às pesquisas e o grande planejador dos contextos de aprendizagem.
Além disso, existem conteúdos que os pequenos precisam aprender nessa fase da vida:
- Hábitos de cuidado e higiene
- Habilidades como segurar o lápis, manusear a tesoura, o talher etc.
- Conhecer o meio ambiente, perceber e respeitar a diversidade
- E muitas outras situações, habilidades e valores.
Por isso, a Educação Infantil tem sim seus grandes objetivos e aqueles pequenos construídos no percurso da relação com as crianças. Porém, um não exclui ou diminui o outro!
Além de planejar e refletir sobre o que as crianças precisam experimentar, aprender e a proposição de desafios que partem dos interesses, ainda é preciso lidar com as singularidades. No caso da tesoura, por exemplo, é necessário trabalhar o seu manuseio. Mas todas as crianças possuem as mesmas habilidades? Estão no mesmo estágio de desenvolvimento? Algumas tem mais familiaridade com instrumento do que as outras?
Assim, a intenção também reside em perceber aquilo que as crianças estão fazendo e aquilo que não estão fazendo. Quais são as demandas de aprendizagem e quais as curiosidades.
Que tal olhar uma prática para aprofundar essa discussão?
Numa pré-escola, a professora percebeu que uma das crianças não queria comer o que era servido nos almoços. Ela tentou diversas estratégias mas a criança recusava e não se alimentava a contento.
O que fazer?
Discutindo com a equipe pedagógica, surgiu a ideia de oferecer uma comida alternativa na forma de sanduiche saudável, reforçado com proteínas, legumes e vegetais.
Reflexão da equipe: onde essa atitude poderia levar?
Será que os outros pequenos começariam a cobrar almoços alternativos? Se a criança que não queria a comida do almoço continuasse com esse comportamento, quais as consequências de uma alimentação deficiente?
A equipe ponderou e resolveu experimentar a ideia dos sanduiches.
Na sala da criança “inapetente”, foi colocada uma bandeja com os tais sanduiches saudáveis no meio da manhã. No início, muitas crianças experimentaram o alimento, inclusive a “inapetente”. Com a novidade, alguns pequenos almoçaram menos e outros comeram bem o lanche e o almoço.
Com o passar do tempo, a bandeja com os sanduiches passou a ser oferecida no refeitório junto com a comida, fazendo parte da refeição da escola.
A reflexão sobre a intenção dessa ação não parou por aí. A equipe pensou então na questão da oferta de escolhas para os pequenos, na apresentação dos alimentos e na arrumação das mesas na hora das refeições. Por fim, planejaram um projeto de auto-serviço.
Como resultado, perceberam que com a possibilidade de escolher, todas as crianças começaram a se alimentar melhor.
Além de refletir e planejar propostas com intenção pedagógica, colhidas no contexto da prática com as crianças, os professores observaram que as “barreiras” e problemas previstos nos planejamentos, geralmente não se concretizavam. Aliás, ao contrário, o fato de experimentar propostas fez a equipe compreender que muitos dos problemas só apareciam nas previsões pessimistas, que não creditavam às crianças a capacidade de contribuir com suas próprias maneiras de resolver problemas.
Quando nos conscientizamos da intencionalidade das nossas ações, permitimos que todas as práticas educativas sejam comandadas por objetivos claros. Da mesma maneira, permitimos que as crianças ajam com intensão ao se expressarem e se envolverem nas rotinas e experiências propostas. É um jogo de mão dupla, mas que começa com o professor.
Essa experiência prática foi compartilhada por uma professora australiana, num programa apoiado pelo governo para fomentar a reflexão e a formação de educadores da educação infantil. Escolhemos esse depoimento porque, apesar de possuirmos culturas tão diversas, os professores de Educação Infantil enfrentam problemas muito semelhantes.
→ Leia sobre ações e atitudes do professor nas postagens:
Parabéns pelo artigo, conheci por meio do curso de graduação, e já estou “favoritando” aqui para leituras frequentes.
Karina,
Muito obrigada pelo retorno!
Como fica a intençao pedagógica no atendimento remoto? Sou professora de Educação Infantil 0-3 anos.
Olá queridas, boa tarde. Adoro o site de vocês. Utilizo todo material para estudo. Teriam como indicar algum livro para estudo mais especifico das intencionalidades pedagógicas? Aguardo retorno, Profa Roberta
Olá Roberta!
Obrigada pelo elogio.
Gostamos muito do livro da Madalena Freire (Educador educa a dor) em que a questão da intenção pedagógica permeia todo o conteúdo. Mas, para ficar mais no terreno da educação infantil, nosso livro tem um tópico específico (Educação Infantil: um mundo de janelas abertas) e outras postagens também abordam esse aspecto central da prática pedagógica:
Atividades que “dão certo” e que “não dão certo”: o que pensar desta classificação?
Campos de experiências e objetivos da atividade: o que pensar sobre isso? – PARTE 2
Rotinas não tão rotineiras
Cantos de atividades para revelar projetos
Projetos: um quadro organizador para planejar e construir
Roda de conversa: ancestral e primordial
Curiosidade: o combustível da aprendizagem
Lições de Reggio Emilia do Colegio Aletheia
Afinal, o que é Documentação Pedagógica?
Acredito que todas as postagens do Tempo de Creche falem sobre intenção pedagógica! A clareza do professor em relação ao que ele espera que as crianças façam e aprendam durante as atividades é o que move uma prática pedagógica de qualidade. Ter objetivos específicos sobre as aprendizagens das crianças e pensar nas estratégias para ajudá-las nessa conquista é trabalhar com intenção pedagógica. Assim, toda vez que você ler bons livros e artigos sobre práticas na educação infantil poderá entender onde os professores queriam chegar com as atividades propostas, o que fizeram para que as crianças vivessem as experiências (materiais, espaços e provocações) e as reflexões sobre os registros. Isso tudo é intenção pedagógica!
Espero ter ajudado 😉
Olá . boa noite
Na minha escola, temos casos semelhantes ao citado, mas devido as normas estabelecidas pelo orgão responsável pela alimentação, não temos essa flexibilidade para mudar o cardápio. Gostaria de saber o que pode ser feito para resolver esses casos de inapetencia.
Olá, Sueli. Obrigada pelo retorno. Como cada instituição tem sua própria organização, penso que o melhor é procurar o serviço de nutrição. Como professora, há sempre a possibilidade de apresentar os pratos de forma lúdica e de maneira criativa. Converse com as famílias e proponha um projeto de pesquisa dos pratos mais divertidos que as mães podem enviar as receitas. Descubra a forma e hábitos de alimentação das famílias e, em especial, das crianças que te preocupam. A educadora Tania Fukelmann Landau, especialista em Educação Lúdica e parceira, escreveu duas postagens sobre o importante, polêmico e delicado momento da alimentação. Como qualquer ação que realizamos com as crianças, a hora das refeições precisa se transformar em momento de prazer para saciar os desejos da barriga vazia, da mente pesquisadora e do coração amoroso. É uma questão de olhar e de intenção. É cuidado e também educação. Leia as postagens: – Alimentação de corpo e alma, um desafio para as creches e famílias – parte 1 e 2
Muitas vezes a alimentação é motivos de chantagem e a criança percebe esse poder ao recusar se alimentar. Em roda, descubra os gostos e o que as crianças acham das comidas e porque é importante comer de tudo. Abraço
Amei o texto….parabéns por trazer essa reflexão à nós, educadores!
Olá, Neide. Obrigada pelo retorno. Estamos abertas a sugestões, dúvidas e compartilhe conosco suas reflexões e de seus colegas. Abraço