Uma das grandes conquistas da criança em seu processo de desenvolvimento é o início da construção da própria identidade. Mas, se refletirmos profundamente sobre esse tema, percebemos que a identidade leva uma vida inteira para ser construída!
Quem sou eu?
O que eu gosto?
O que eu não gosto?
Como eu me cuido?
Como me relaciono?
O que é importante para mim?
O que me diverte?
E muitos etc. para conduzir uma jornada de décadas de autoconhecimento!
Contudo, esse caminho tem seu início quando o bebê vem ao mundo e experimenta as sensações, emoções e aprendizagens que faz do seu entorno. Assim, o roteiro interminável das perguntas acima é formulado desde sempre!
Na Educação Infantil percebemos que esse é um conteúdo de trabalho reconhecido e muitos educadores começam o ano letivo com um “projeto identidade” para levantar a singularidade de sua turma e procurar integrar o grupo. Esse é de fato um bom começo, mas não se resume a um “projeto”. O professor precisa incluir atividades, buscar brechas nas situações para revelar as características individuais de cada criança e valorizar o crescimento da pessoalidade de cada pequeno. Por outro lado, será que temos noção da dimensão prática dessa questão?
No texto provisório da Base Nacional para Educação Infantil é possível encontrar dicas para propostas e práticas que abraçam esse importante aspecto do desenvolvimento infantil. No Campo de Experiência EU, O OUTRO E O NÓS, de forma geral, o documento destaca:
As crianças vão se constituindo como alguém com um modo próprio de agir, de sentir e de pensar na interação com outras crianças e adultos. Conforme vivem suas primeiras experiências na coletividade, elaboram perguntas sobre si e os demais, aprendendo a se perceberem e se colocarem no ponto de vista do outro, a se oporem ou concordarem com seus pares, entendendo os sentimentos e os motivos, as ideias e o cotidiano dos demais parceiros. Conhecer outros grupos sociais, outros modos de vida, por meio de narrativas, de contato com outras culturas, amplia o modo de perceber o outro e desfaz estereótipos e preconceitos. Ao mesmo tempo em que participam das relações sociais e dos cuidados pessoais, as crianças constroem sua autonomia e senso de autocuidado.
Nos direitos de aprendizagem desse campo de experiências é possível encontrar caminhos para a prática:
Direito 1: CONVIVER – interagir, relacionar-se, conhecer culturas e singularidades das pessoas
Direito 2: BRINCAR – construir o sentido do singular e do coletivo, da autonomia e da solidariedade fazendo de conta, jogando com regras, fazendo construções e pesquisas
Direito 3: EXPLORAR – explorar materiais, brinquedos, objetos, ambientes e o entorno físico e social para se conhecer e conhecer ao outro: potencialidades, limites, interesses, sentimentos, sensibilidade e demandas
Direito 4: PARTICIPAR – promover a participação ativa nas situações cotidianas do cuidado de si e do outro, favorecendo a aprendizagem do respeito aos ritmos, interesses e desejos das outras crianças
Direito 5: COMUNICAR – favorecer a comunicação por meio das linguagens expressivas e criativas, valorizando e buscando a compreensão da exposição das necessidades, sentimentos, dúvidas, hipóteses, descobertas, oposições.
Direito 6: CONHECER-SE – construir uma identidade pessoal e cultural, valorizando suas próprias características e as dos outros, com respeito à diversidade.
As pistas para a prática
Apresentar e introduzir:
- Chamar cada pequeno pelo nome correto, claramente, sem apelidos ou reduções
- Apresentar-se pelo nome e título de professor! Você não é parente dos pequenos, não é tio e nem tia! A construção das identidades parte de uma coerência que a criança percebe!
- Apresentar as funções, de maneira simples, de cada profissional da creche, bem como o nome correto das pessoas que lá trabalham ou visitam.
- Fazer um quadro de “presença”, com fotos e os nomes das crianças
- Fazer um painel com fotos das famílias e das crianças
Depois dos primeiros contatos com os nomes e as ocupações, é o momento de destacar as características pessoais nas conversas, momentos de roda e encontros com a equipe da creche e crianças de outras turmas:
- Valorizar a diversidade (alto/baixo; cabelo curto/comprido/liso/de cachinhos/loiro/castanho/preto/ruivo; cor dos olhos; com ou sem óculos; tipo de roupa; tipo de sapato …).
Cultura
Pesquisar, junto com as crianças, as origens, raízes e costumes culturais das famílias, dos profissionais e as suas!
- De onde vieram? (de perto/de longe; tem praça/parque/praia/lago/floresta/ montanha/bichos; tem casas/edifícios; carros/trens/barcos/aviões)
- Cantam, dançam ou contam histórias?
- Participam de eventos culturais?
- O que comem?
- Como se vestem?
Relações
Favorecer situações de relacionamento espontâneo entre as crianças do grupo, de outras turmas e com outros profissionais da creche:
- Nas brincadeiras e jogos. Os cantos de brincadeiras naturalmente mobilizam a formação de grupos variados
- No faz de conta
- Elegendo “ajudantes” para você e para os outros profissionais
- Formando pequenos grupos nas refeições e incentivando as relações
- Estabelecendo contato visual, a fala e o toque delicado e dedicado nos momentos de cuidado e higiene
Conversar, conversar e conversar
As rodas de conversa são imprescindíveis na Educação. Devem acontecer diariamente, num processo de construção dessa aprendizagem: sentar em roda, falar e ouvir o outro, contribuir com o assunto em pauta, tudo dentro de um espírito de brincadeira e respeito à individualidade. Por isso, as rodas devem começar gradualmente, desde cedo, no berçário. Pode-se organizar um momento na rotina do dia para que ela sempre aconteça e planejar alguns temas no caso da conversa não surgir naturalmente:
- Levar objetos, fotos e reproduções de obras de arte são bons iniciadores interações em grupo e funcionam muito bem como estratégia para os pequeninos. Mas não cabe uma descrição ou explicação sobre o que está sendo apresentado! Não é um momento de “aula”, que aliás, nem funcionaria com as crianças da educação infantil que só aprendem experimentando e fazendo. É uma questão de apresentar o que foi levado, permitir “olhar mexendo” e deixar a conversa partir dos interesses e colocações expressivas das crianças.
- O que fizeram no final de semana?
- Como é a sua casa?
- Quem tem bichinho?
- Quem foi ao parque?
Quando sentamos à mesa em grupo é natural que surjam conversas! Aproveitar para praticar e desenvolver esses momentos de convívio social sentando-se um pouquinho em cada mesa, aproveitando para entrar na conversa que estiver acontecendo ou começando uma nova.
Linguagens artísticas
Música
- As canções que favorecem brincadeiras, destacam as partes do corpo e trazem contextos culturais que identificam as raízes das crianças e da comunidade são recursos importantes para a construção da identidade. Pesquise e use!
Artes visuais
- As artes visuais são ótimas para construir registros sobre si próprio, dos colegas e das famílias.
- Fazer o contorno das crianças, de partes delas (mãos, pés, cabeças); depois vestir, pintar e fazer colagem
- Propor desenhos com interferências colando, por exemplo, a foto do rosto do criança no papel. Pode-se colar fotos dos colegas e da família.
- Fazer painéis com o registro da altura das crianças: com risquinhos, barbantes colados e fitas adesivas etc.
Expressões do corpo e o jogo simbólico
Perceber os próprios movimentos, os limites e as conquistas faz parte da construção da identidade. Observar o outro e interagir complementa o processo. Brincadeiras que desafiam a espacialidade, que favorecem agir ora em grupo ora individualmente, que propõem construções e transformações dos espaços são apropriadas a esse campo de experiências:
- Espelhos na sala são recurso fundamental. Favorecer a exploração livre dos reflexos e propor e mediar brincadeiras com as imagens refletidas. Os espelhos podem estar afixados nas paredes, dentro de caixas e tuneis, e no chão, no caso dos inquebráveis.
- Fazer circuitos com colchonetes, caixotes, pneus, bambolês, fita crepe delimitando percurso
- Provocar as construções e o faz de conta com caixas, caixotes e tecidos de diversos tamanhos e texturas
- Organizar labirintos com tecidos e papeis pendurados e amarrados no teto, em paredes, em árvores etc.
Assim, a identidade da criança vai sendo conquistada com um trabalho lúdico que promove desenvolvimento e amadurecimento. O importante é não esquecer que identidade é individual e singular, por isso, só é possível trabalhar essa questão com propostas levantadas do grupo de crianças, como propositoras e protagonistas. São delas as identidades a serem construídas! É a partir delas que podemos buscar os interesses e as dicas para planejar propostas. Outra questão fundamental é o olhar para o indivíduo. Atuando com pequenos grupos, no dia a dia, o professor escuta, acompanha e reconhece cada criança na sua individualidade.
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Para saber mais sobre esse tema leia as postagens:
- Campos de experiências todos os dias!
- Criança: no singular e no coletivo
- Arte, cultura, expressão e a Base Nacional Comum Curricular
- Base Nacional Comum Curricular: uma referência prática? Você decide!
- Base Nacional Comum Curricular: a criança como protagonista
- Base Nacional Comum e o pensamento matemático – 2a parte
- Como é a matemática na Base Nacional Comum – 1a parte
Gostaria de saber se a brincadeira do espelho dentro da caixa está no campo de experiencia o eu o outro e nos dá BNCC.sou estudante de pedagogia e estou com dificuldade de fazer uma atividade
Olá Adriane.
Sim, a brincadeira de fazer caretas pode ser planejada para contemplar os objetivos relacionados à identidade (campo O eu, o outro e o nós) e também os objetivos relacionados à expressão e jogo dramático (campo Traços, sons, cores e formas). Tudo vai depender da intenção do professor e das ações provocativas durante a atividade. Leia nossa postagem recente “O que vem antes: a atividade ou o objetivo da atividade” 😉
Sempre trabalhamos identidade no início do ano letivo. Este ano estou com a proposta de continuar trabalhando sobre a identidade utilizando a música “Ora Bolas” do Palavra Cantada. Aos poucos irei desenvolvendo o trabalho com o Grupo de 4 anos. E ao mesmo tempo trabalhando a interdisciplinaridade e a alfabetização.
Olá, Ester. Bem interessante sua ideia! Não esqueça, depois, de nos contar como foi para compartilhar com os leitores! Abraço.
A proposta é ótima, mas aonde fica a alfabetização nesse caso?
Já temos um contingente de analfabetos funcionais nas escolas e se não for trabalhado o alfabeto com eles estaremos aumentando esse contingente.
Olá, Alexandre. Pertinente a sua preocupação. A alfabetização é um processo da maior importância. Esta postagem refletiu, conforme seu título sugere, sobre as diferentes possibilidades de construção da identidade das crianças bem pequenas. Nossa preocupação é um trabalho de qualidade na idade certa. “Alfabeto na parede” não se traduz em atividade significativa. Sugerimos a leitura de outras postagens sobre letramento e alfabetização: – Palavra de… Magda Soares: criança e a reinvenção da escrita – e – Palavra de… Magda Soares: a linguagem escrita na infância. Abraço