Educar crianças pequenas é, antes de tudo, um compromisso com a escuta atenta e a multiplicidade de caminhos possíveis. Ao longo dos séculos XX e XXI, diferentes pensadores e experiências educativas ofereceram contribuições valiosas que seguem inspirando escolas ao redor do mundo. Para acolher essa diversidade, é preciso compreender que cada país, cultura e comunidade escolar carrega saberes únicos — e que há muito a aprender quando nos abrimos a esses encontros. Foi com esse olhar que visitei a escola montessoriana 2Voices, na Holanda, uma experiência que ampliou minha compreensão sobre a infância, a autonomia e o papel do ambiente na construção do conhecimento.
Maria Montessori nasceu no final do século XIX na Itália (1870) e foi educadora, médica e pedagoga italiana. Em 1934, o regime fascista fechou muitas escolas montessorianas, e por conta disso, Montessori deixou a Italia. Depois de passar pela Espanha e pelo Sri Lanka, foi viver na Holanda, onde faleceu em 1952.
A escola 2Voices fica em Amsterdam, capital da Holanda. É uma pré-escola bilíngue, que ensina o holandês e o inglês para crianças de 12 meses (que já consigam andar) a 4 anos. Foi criada há 26 anos e está localizada em frente a um lindo parque público. Na Holanda, grande parte das crianças ingressa na rede pública escolar com 4 anos de idade.
A escola 2Voices fundamenta sua proposta na observação atenta do desenvolvimento natural da criança. Inspirada na abordagem Montessori, valoriza a liberdade com responsabilidade, em um ambiente cuidadosamente preparado, com limites bem definidos e materiais que promovem a aprendizagem autodirigida. O educador atua como observador sensível e facilitador, organizando o espaço de forma intencional e apresentando os materiais de maneira personalizada, respeitando o ritmo e os interesses de cada criança.
Na faixa etária de 1 a 4 anos incompletos, o método Montessori foca especialmente no desenvolvimento da autonomia, da coordenação motora e da linguagem — áreas em que a criança está naturalmente mais ativa. Nesse período, a filosofia Montessori propõe:
Assim, liberdade, organização (rotina), acompanhamento do adulto experiente, jogos e brincadeiras autodirigidas, limites e combinados se equilibram e sustentam as experiências educativas das crianças na perspectiva de Montessori. Foi isso que pude vivenciar ao visitar a escola.
Heidi Philippart-Alcock, diretora pedagógica e formadora e consultora da Associação Internacional Montessori (AMI), e Annie Cox, bailarina, professora de crianças pequenas e diretora administrativa, fundaram a escola e, gentilmente, me receberam.
Cheguei pela manhã e fiz minhas observações num período interessante de alimentação, higiene, jogos e brincadeiras. Organizei os registros para compartilhar os destaques observados com os leitores do Tempo de Creche.
DESTAQUES
1. “Todos os dias percorremos a mesma rotina. Isso dá estabilidade, segurança e acolhimento para as crianças”. Esta foi a frase que ouvi repetidas vezes da Annie. A partir disso, ela justificava o clima de calma e desenvoltura das crianças que se movimentavam pelos espaços da escola com autonomia e propósitos singulares.
Annie explicou que ao se apropriarem da rotina – tempos, espaços, ações e materiais – as crianças podiam participar com autonomia de tudo o que a escola oferece: alimentar-se, cuidar-se e brincar. As relações adultos-crianças e crianças-crianças são tranquilas, naturais e respeitosas porque as crianças sabem o que acontece na escola e podem tomar decisões apoiadas nos limites que também são ensinados. Isso não quer dizer que não observei conflitos ou crianças que “esqueciam” de vestir os sapatos para ir ao parque, ou que resistiam ir ao banheiro para trocar a calça-fralda (falarei dela mais adiante). Mas o reconhecimento sobre os benefícios de uma rotina comum a todos, permitia que os “desvios” de rota ou a simples desatenção ou falta de conhecimento por parte das crianças fossem tratados com tranquilidade e naturalidade por todos.
2. Observei o café da manhã e o almoço e pude constatar como os momentos de alimentação são valorizados pela metodologia de Montessori. A louça, apesar de adequada ao tamanho das crianças, não era infantilizada. Canecas e pratos de vidro e, de acordo com o tamanho das mãozinhas, maiores ou menores. As mesas postas com capricho, com jarrinhas de água para cada um se servir, jogo americano com sinalização para aprender sobre o posicionamento dos objetos e vasinhos de plantas e flores que mais tarde compreendi serem produzidos nas salas, pelas próprias crianças.
Professores se sentam com as crianças e, se quiserem comem junto com elas: modelo e partilha!
Para os menores, as travessas de comida são levadas à mesa. Percebi que quando as crianças queriam repetir os alimentos, as professoras permitiam que tentassem se servir sozinhas, mesmo que tivessem dificuldade. Caso não conseguissem, as professoras orientavam e ajudavam.
Cozinha à vista de todos! Tudo exposto para que as crianças vivenciem o preparo dos alimentos e a limpeza do ambiente. Aliás, duas pias baixinhas fazem parte da bancada do “self-service”. Escovas, esponjas, detergente, limpadores e paninhos são disponibilizados para que cada criança lave os utensílios utilizados e limpe seu local na mesa.
3. As turmas multietárias são divididas em “maiores” e “menores”. Percebi poucas propostas coletivas. Nas salas dos menores, observei uma roda de leitura e depois um momento de brincadeira autônoma, com materiais e jogos típicos Montessori, disponíveis em pequenas estantes e cantinhos previamente organizados pelas professoras. Os pequenos passeavam pela sala para escolher as brincadeiras. Ora inspiravam-se nas brincadeiras dos colegas, ora escolhiam algo nas estantes. As professoras mediavam essas escolhas, orientando modos de pegar os materiais e levar para uma mesa ou canto da sala. Também acompanhavam os pequenos que demonstravam dificuldade em realizar a atividade. Quando terminavam de brincar, as crianças levavam os materiais para os cestos e prateleiras para serem guardados. As que ainda estavam aprendendo a arrumar o ambiente, eram orientadas pelas professoras. Ninguém deixava qualquer material que não estivesse sendo usado, no chão ou nas mesas.
Nas salas dos maiores pude observar cantinhos de brincadeiras, além dos jogos e materiais típicos da abordagem Montessori. As crianças se organizavam em torno das possibilidades e, com mais destreza que os menores, transportavam os jogos e materiais, brincavam e devolviam ao lugar. No período em que estive nestas salas percebi que a maioria das crianças brincava sozinha com jogos “matemáticos” e de alfabetização, que exigiam concentração e raciocínio. Alguns cantinhos eram inspiradores, convidativos e envolviam grupos de 2 ou 3 crianças.
4. Os cantinhos de brincadeiras faziam alusão às ações do dia a dia:
- mesa posta com toalha, pratinhos, talheres, copos e garrafa térmica com chá (de verdade!);
- pequena pia e/ou bacia com esponja, sabão, jarra com água, panos, toalhas, escorredor e louça;
- objetos de decoração;
- pendurador com vassouras, rodos, panos, pás e lixeira;
- totens com diversos tipos de fechamento de roupas e sapatos: botões de diferentes tipos, zíperes, cadarços, ilhoses, cintos, entre outros;
- cestos, bandejas e caixas com materiais disponíveis para as crianças escolherem: objetos sonoros, lápis, tesouras, cola, papeis, agulhas grossas e linhas. Atividades que envolviam estes materiais: desenhar, colorir, recortar, colar, perfurar (com a agulha) e costurar;
- mesa com flores, jarra com água, pequenos vasinhos, funil e toalhinhas de crochê, de renda e de tecido estampado. Observei uma menina pegando as flores, cortando a pontinha do caule, despejando água nos vasinhos com a ajuda do funil, ajeitando a flor escolhida no vaso e levando o arranjo para as mesas do refeitório. Lá, a menina colocava o paninho de crochê no centro da mesa, posicionava o vasinho sobre ele e ajeitava a flor. Fez alguns arranjos e os levou para as mesas de outras salas também;
- canto com toca CD e alguns CDs;
- tapetes com os jogos montessorianos de matemática (pesos, tamanho, métrica, formas, etc), quebra-cabeças e bandejas com letras e pranchetas e lápis para escrever;
- aquários, comidinha para peixes, vasos de plantas e regadores. O cuidado com as plantas e os peixes seguia um protocolo e também era executado pelas crianças;
- cantinhos acolhedores de leitura com estante de livros, tapete e almofadas;
- para atender toda a turma, além dos cantinhos já preparados, as crianças podiam encontrar nas prateleiras mais bandejas e kits de materiais para brincar de lavagem, de servir chá etc. Algumas bandejas continham jogos e objetos para seriar e classificar por cor, forma, peso, tamanho e outras características.
- mesa posta com toalha, pratinhos, talheres, copos e garrafa térmica com chá (de verdade!);
5. A arquitetura da escola favorece a transparência, o que ajuda na autonomia e mobilidade das crianças e também no acompanhamento dos adultos. O banheiro é quase central, permitindo que os maiores o frequentem sozinhos. As professoras acompanham as crianças que estão aprendendo a se limpar e aproveitam os momentos para ensinar os hábitos corretos de higiene.
Os menores usam uma espécie de calça reforçada de tecido de algodão que retém a urina e as fezes, mas deixa a criança desconfortável o suficiente para que queira se limpar e se trocar. Estas calças pertencem à escola, que as lava e desinfeta apropriadamente. Este recurso acelera o desfralde de modo natural e é ecológico, evitando o descarte de plástico na natureza. Assim, cestos com diferentes tamanhos de calças e as mudas de roupa dos menores estão colocadas na entrada do banheiro e facilitam a ação das professoras e das crianças.
6. Um pequeno parque envidraçado também está situado no centro da escola, o que permite que as crianças o utilizem com autonomia. Observei algumas crianças maiores dirigindo-se à entrada da escola para vestir os casacos de inverno (fazia frio em março). Também trocaram os calçados e colocaram um colete amarelo chamativo. Depois de prontas, dirigiram-se sozinhas ao parque interno. Uma delas havia esquecido de trocar o calçado (elas usam chinelos, sandalhinhas e “crocs” nos ambientes internos). Ao notar a criança com a sandalhinha, Annie, a diretora que me acompanhava, falou para a menina: “fulana, você não trocou seu sapato. Por favor, troque o sapato e pode voltar ao parque para brincar”. As crianças respeitavam os horários da rotina e tinham liberdade para se arrumar, ir ao parque brincar e, quando satisfeitas, retornar para as salas.
7. A ida ao parque público, que fica na frente da instituição, é considerada como parte da rotina diária da escola. À tarde, depois do horário do sono e do lanche, as crianças se preparam para ir ao parque público brincar. Vestem casacos e o colete sinalizador e trocam os sapatos. Os menores são colocados numa espécie de carrinho coletivo dirigido pelas professoras. Os maiores se deslocam de mãos dadas, orientados pelas docentes. O uso do espaço público coletivo também é educativo e valorizado por todas as escolas que conheci em Amsterdam. Frequentá-los ensina a caminhar pela cidade, atravessar a rua, respeitar os equipamentos e, fundamentalmente, constrói cidadania. O parque pertence a todos os cidadãos, que podem desfrutá-lo com respeito e, especialmente, respeitar o direito das crianças de brincar e aproveitar o sol e a natureza.
8. Um rito de passagem poético e identificativo: longos cartazes estavam pendurados nas paredes da escola com uma espécie de linha do tempo produzida pelas crianças maiores e suas famílias. A proposta, que se repete todo final de ano, é solicitar às famílias e às crianças do último ano na escola, que escolham um marco para cada ano de suas vidas, selecionando imagens e/ou desenhos ilustrativos do momento e uma legenda. O que se via pelas paredes eram linhas do tempo produzidas pelas turmas de 3 a 4 anos, com fotos de nascimento, de bebês e seus parentes, brinquedos favoritos, aniversários, festejos, viagens, pets, entre outros, com legendas escritas (copiadas!) pelas crianças. Muito bonito ver como as crianças se entusiasmavam em “ler” os próprios cartazes e os dos amigos. Histórias compartilhadas entre a comunidade escolar que consolidam processos de desenvolvimento, identidade e passagem.
Embora minha inclinação pessoal seja por abordagens que priorizam a curiosidade, a investigação, as expressões artísticas, a cultura e um brincar mais imaginativo — como a Pedagogia da Investigação, Reggio Emilia e experiências que acompanhei em escolas na Suécia, no Canadá e, no Brasil, na Escola do Bairro (SP) —, reconheço a profundidade e a singularidade das contribuições de Maria Montessori e da escola 2Voices. A visita me proporcionou uma nova compreensão sobre a força da rotina e o respeito genuíno à autonomia infantil. Mais do que isso, Montessori nos lembra que as crianças pequenas aprendem a partir do contexto em que estão inseridas: o cotidiano precisa refletir a cultura local, a organização dos espaços e das ações, sem recorrer à fantasia ou à infantilização. Nesse ambiente real e significativo, as crianças constroem conhecimento sobre si mesmas, desenvolvem independência com serenidade e tornam-se, pouco a pouco, cidadãs conscientes e seguras de seu lugar no mundo.
Visitar a escola 2Voices reforçou, para mim, a importância de manter o olhar aberto e curioso diante das múltiplas formas de educar. Cada abordagem oferece lentes distintas para compreender a infância — e essa diversidade é, por si só, uma grande riqueza. O essencial, talvez, esteja em escutar as crianças com atenção, respeitar seus tempos e contextos, e continuar construindo, com elas, caminhos potentes de aprendizagem e cidadania.
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PARA SABER MAIS…
→ Livros conhecer sobre os estudos e a abordagem de Maria Montessori:
- A criança, de Maria Montessori, Editora Círculo, 1992
- Maria Montessori: sua vida e sua obra, de E. M. Standing, Editora Cultrix, 2005
- Montessori: the science behind the genius, de Angeline Stoll, Oxford University Press, 2005
- Publicações da Associação Montessori do Brasil (AMB)
→ Postagens sobre outras abordagens de educação infantil:
- Qual é o papel do professor na brincadeira da criança? E o papel da brincadeira na aprendizagem da linguagem? Shelley Peterson responde!
- Dois conceitos recentes: pedagogia da investigação e alfabetização ambiental. Já ouviu falar?
- Projetos, investigações e a cultura de pensamento
- Curiosidade: o combustível da aprendizagem
- Lições de Reggio Emilia do Colegio Aletheia
- Um relato sobre relações e aprendizados na prática de Reggio Emilia