Escola, identidade e comunidade: aprendizagens com o Quilombo Muquém

Escola, identidade e comunidade: aprendizagens com o Quilombo Muquém

O que a escola da comunidade quilombola Muquém tem a ensinar para as escolas brasileiras?

A Escola Municipal Pedro Pereira da Silva pertence a única comunidade remanescente do Quilombo dos Palmares, no estado de Alagoas, e é um patrimônio da memória afro-indígena brasileira.

 

Joyce Eiko Fukuda, parceira do Blog e dos livros de formação, e eu, Joyce Rosset, tivemos o prazer de conhecer e conversar com a equipe pedagógica da escola do Quilombo Muquém.

O Quilombo Muquém guarda uma história antiga e profunda. Refúgio dos escravizados fugitivos das fazendas de cana da região, as terras que ficam no sopé da Serra da Barriga foram ocupadas há mais de 200 anos. Cizino (José Cizino de Oliveira), diretor administrativo, e Andréa do Nascimento Maia Gomes, coordenadora, nos contou que a região de Mata Atlântica era um ótimo esconderijo para os escravizados que conseguiam escapar em busca de liberdade. Estas pessoas se “amuquenharam” por aquelas bandas, segundo Maria das Dores, ceramista e moradora do quilombo, e assim o nome do quilombo foi cunhado: Muquém.

Um pouco sobre os quilombos

Antes de continuar com a resposta à pergunta feita no início desta postagem, vamos a um pouco de história.

Em 1740, os portugueses definiram os quilombos como uma habitação de “negros fugidos” em terrenos vazios, sem outras construções ou ferramentas. Ao longo da história, o conceito de quilombo ganhou outros contornos e foi entendido como expressão de resistência e negação do sistema escravista. Hoje, a Comunidade de Muquém é vista como tradicional, com costumes, modos de vida e relações sociais e culturais característicos, e com direitos garantidos sobre as terras ocupadas. Além disso, seus habitantes constituem um grupo étnico, histórico e com identidade social.

Ao conversar com a equipe pedagógica e os gestores da escola, intriguei-me com a multiplicidade étnica dos educadores. Antes mesmo de expressar a minha curiosidade, Cizino esclareceu que a comunidade era antiga, seus habitantes tinham diversas origens e todos eram unidos pela história de Palmares e a luta por reconhecimento e direitos.

Vi-me diante de um retrato de Brasil mais do que autêntico!

O quilombo atravessa a história

Segundo estudos, o Quilombo dos Palmares surgiu por volta de 1580, num território de mata fechada e íngreme, o que facilitava o esconderijo dos escravizados e a dificuldade de recaptura. Foram se juntando a estas comunidades, indígenas e pessoas brancas pobres e mestiças. A mata, aos poucos foi sendo cortada para dar lugar a plantações.

Aos poucos, a comunidade desenvolveu seus roçados, alguns grupos foram trabalhar nas fazendas próximas e muitos cidadãos dedicaram-se às artes da cerâmica, utilizando o excelente barro encontrado no local.

redeartesol.org.br

Muquém abriga artesãos importantes, alguns deles considerados patrimônios culturais brasileiros. Irinéia Rosa Nunes, ceramista patrimônio vivo, é conhecida por suas esculturas de cabeças, expostas em diversas partes do mundo. A comunidade também se especializou na produção das panelas de barro e nas bijuterias de argila.

Antes de 2010, a maioria das casas era feita de pau a pique construídas em atividades comunitárias. Aos domingos, dia de folga, alguns grupos se reuniam para construir uma casa. Os mais fortes transportavam o barro e o bambu para erguer as paredes. As cozinheiras preparavam o almoço nas grandes panelas de barro. No final da construção, todos entravam na casa e pisavam a terra do chão para que ficasse batida. Essa “pisação” deu origem ao samba de coco, tocado e dançado pelos habitantes de Muquém.

A história recente da grande cheia do Rio Mandaú

Chegamos a 2010, ano em que chuvas muito volumosas assolaram a comunidade, fazendo com que o Rio Mandaú, que contorna a região, enchesse e transbordasse, devastando grande parte das moradias e construções.

E aí começa uma nova história da comunidade.

Para escapar das águas, alguns moradores subiram em duas grandes árvores de jaca, plantadas há muitas décadas na frente das residências. Os mais fortes, escalaram as árvores até o topo, os mais velhos e as crianças, se alojaram nos galhos mais baixos. Durante as 18 horas em que as águas permaneceram no local, as pessoas ficaram “penduradas” nas duas árvores. Os homens abrigados no alto das jaqueiras pulavam para os telhados das casas para pegar alimentos que eram compartilhados com todo o grupo. As pessoas que ficavam nos galhos baixos, monitoravam as águas para avisar ao grupo se poderiam descer.

A cidade perdeu mais de 140 moradias e diversas construções que precisaram ser realocadas.

Reconstrução, superação e novas conquistas

A reconstrução da cidade parece ter refrescado os conceitos relacionados à identidade e à preservação da cultura e da natureza. A escola encabeçou parte da mudança, ampliando seu papel de alicerce na formação das crianças e jovens da região.

 

A história da enchente e dos grupos pendurados nas jaqueiras passou a ser recontada como um valor de sobrevivência e atitude comunitária. A cena se tornou tema da expressão artística dos artesãos, que frequentam a escola contando suas histórias e ensinando modelagem e o processo de produção das peças para as crianças. Os mais velhos são levados aos locais de extração da argila para conhecem os procedimentos para transformar o barro e adequá-lo à modelagem.

 

 

 

 

 

O samba de coco e a capoeira foram introduzidos nas atividades da rotina escolar e fazem parte das festas e celebrações realizadas. O mungunzá, prato da culinária negra, é parte do cardápio das refeições da escola.

Por fim, a natureza também foi considerada. A escola desenvolveu um projeto de replantio de mudas de árvores nativas com o intuito de recuperar as matas e a vegetação original. Anualmente as crianças plantam as mudas no entorno da escola e na cidade. Cada muda recebe uma placa com o nome de quem a plantou. As famílias são convidadas a levarem mudas para serem plantadas em suas casas. Visitas e investigações sobre a linda, rara e mística árvore de Baobá que habita a área externa da escola, foram incluídas entre os projetos das crianças.

 

Assim, a comunidade se afirma e se renova. Equipe e alunos têm orgulho das tradições históricas e regionais. A ancestralidade alicerça a cultura e inclui as novas histórias.

O que aprendemos com a escola do Quilombo Muquém é a sua vitalidade. A história secular se abre para o que a comunidade é hoje: a identidade, as lutas e as expressões que se transformam ao longo do tempo.

Todas as escolas estão inseridas em contextos distintos e característicos que precisam ser considerados e valorizados. Olhar para fora é formar o dentro. É preciso fazer um trabalho em busca das tradições, das culturas e das lutas sociais e políticas regionais para compor a identidade da escola, da comunidade e de cada criança.

As Diretrizes Curriculares da Nacionais da Educação Infantil (2010, p. 19) preconizam:

O estabelecimento de uma relação efetiva com a comunidade local e de mecanismos que garantam a gestão democrática e a consideração dos saberes da comunidade.

Em casa, vivemos a vida do nosso núcleo. A escola é parte do núcleo comunitário do seu entorno e, portanto, ele deve pertencer à vida das crianças e aos contextos reais e significativos de educação.

A escola de Muquém mostra como isso é possível.

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PARA SABER MAIS…

Esta postagem foi escrita a partir do encontro que tivemos com a equipe de gestores e docentes da Escola Municipal Pedro Pereira da Silva e Joyce Eiko Fukuda, parceira do Blog e de nossos livros.

Equipe gestora da escola:

José Cizino de Oliveira – diretor administrativo
Andréa do Nascimento Maia Gomes – coordenadora do fundamental II e EJA
Laudecila Otaviano de Souza – diretora adjunta
Alba Regina dos Santos – coordenadora da educação infantil e fundamental I

O livro que está nas mãos da professora sentada na frente do baobá foi inspirado na história da mestre Irinéia:
“A menina de barro”, de Giannina Bernardes. O livro conta a história de uma família que morava às margens do rio Mundaú, no interior de Alagoas, e vivia a partir da criação de objetos feitos de barro colhido na beira do rio. Para comprar o livro, acesse: https://www.imprensaoficial.al.gov.br/antigo/loja/produto/a-menina-de-barro 

Também consultamos a dissertação de Levy Felix Ribeiro, “Território e memória: uma etnografia na comunidade remanescente quilombola do Muquém em União dos Palmares – Alagoas”, e alguns sites de notícias: https://www.repositorio.ufal.br/bitstream/riufal/3173/1/Territ%c3%b3rio%20e%20mem%c3%b3ria%3a%20uma%20etnografia%20na%20comunidade%20remanescente%20quilombola%20do%20Muqu%c3%a9m.pdf 

“A professora que luta para valorizar Zumbi em escola de União dos Palmares”
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/11/151119_professora_quilombola_fe_ab

“Comunidade Quilombola Muquém: Herdeiros de Palmares”
https://almapreta.com.br/sessao/cotidiano/quilombola-muquem-herdeiros-de-palmares/

“Resquícios de Palmares: o que a comunidade quilombola nos diz”. Denilda Moura, 2009

“Por uma educação quilombola: um olhar geográfico à comunidade remanescente Muquém”. Patrícia Paulino da Silva e Marily Oliveira Barbosa, 2021

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