Será que a primeira infância está se tornando um negócio para o mundo, antes mesmo de ser reconhecida como etapa fundamental da educação do ser humano?
Como a sociedade brasileira está lendo a Educação Infantil?
Na mesma semana tivemos uma entrevista com a prêmio Nobel, James Heckman, economista e agora estudioso dos impactos econômicos da educação infantil. A TV paga apresentou um programa dedicado aos negócios lucrativos voltados à primeira infância (Mundo SA, Globo News) .
O que pensar de tudo isso?
O programa de TV até apresentou produtos interessantes. Mostrou um fabricante de brinquedos para parquinhos, reconhecido pela ONU, que propõe inovações para desafiar as crianças a experimentar novos movimentos, equilíbrio e estratégias para interagir. Outro fabricante desenvolveu jogos que possibilitam adequações para atender crianças especiais.
Mas o que destoou foram os negócios dedicados à “educação” dos pequenos. Sim, educação entre aspas!
Educação, antes de tudo, é uma questão de emancipação, desenvolvimento social e melhoria de qualidade de vida da sociedade. É um assunto sério e complexo para ser transformado em investimentos que gerem lucro para poucos e clientes “satisfeitos”.
O âmbito da Educação pertence às políticas de estado, se constituem em pilar da sociedade e da cultura. É fruto de pesquisas e estudos que atravessam séculos. Avança-se com muita dedicação, ciência e trabalho compartilhado globalmente.
O programa Mundo S/A apresentou escolas, espaços para brincar e até um SPA para bebês. Falava-se, fundamentalmente, em estimular as crianças. Não foram pronunciadas palavras como curiosidade, experiência, cultura e natureza, estruturantes dos processos de aprendizagem e construção de conhecimentos.
Curiosidade e vivências significativas acontecem com crianças motivadas, isto é, quando têm desejo (interno) de aderir às propostas, de brincar, pesquisar e viver experiências para aprender.
Já o estímulo é externo.
Representa a ação de quem estimula e, portanto, pode estar descolada da criança, seus desejos e encantamentos. Uma educação baseada em estímulos está mais centrada no professor e nas metodologias do que nas crianças e suas características e culturas.
Então, o que está acontecendo com a visão de primeira infância?
Estamos vivendo tempos delicados…
Por um lado, temos a entrevista com o Nobel James Heckman que destaca seus métodos científicos criados para avaliar a eficácia de programas sociais e, mais recentemente, os programas voltadas à primeira infância. Para ele, até os 5, 6 anos, a criança aprende em ritmo espantoso, e uma educação qualificada nessa fase será valiosa para toda a vida:
(…) faço contas o tempo inteiro. Uma delas é especialmente impressionante: cada dólar gasto com uma criança pequena trará um retorno anual de mais 14 centavos durante toda a sua vida. É um dos melhores investimentos que se podem fazer. (James Heckman)
As nações que valorizam iniciativas de educação voltadas à primeira infância o fazem na qualidade de políticas públicas e não como nichos de mercado e de negócios! Públicas ou particulares, as escolas devem seguir diretrizes nacionais criteriosamente pensadas e elaboradas.
Por outro lado, temos a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que depende de um programa de formação para que os professores não compreendam a organização das aprendizagens em campos como disciplinarização da Educação Infantil.
O currículo proposto pela Base pode levar os professores a pensar mais enfaticamente sobre objetivos de aprendizagem do que focar na escuta e nas interações para elaborar propostas desafiadoras e provocativas.
A BNCC procura indicar o que se espera que a criança aprenda, elencando um número limitado de objetivos que, se não for complementado pelos currículos municipais, pode subestimar as possibilidades de aprendizagem das crianças e de ensino dos professores.
Finalmente, caminhando em direção à valorização da educação da primeira infância, pela primeira vez o MEC lança o Programa Nacional para o Livro Didático, PNLD 2019, voltado aos professores de Educação Infantil. Porém, o edital corre o risco de derrapar na oferta de livros voltados à manualização de práticas descoladas dos contextos de cada escola e, especialmente, de cada grupo de crianças.
Entre metodologias, lucros, receitas prontas e educação infantil de qualidade, quais caminhos escolhemos trilhar?
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Fontes:
→ Revista VEJA de 27 de setembro de 2017, edição nº 2549
→ Programa Mundo S/A, canal Globo News https://globosatplay.globo.com/globonews/v/6157564/
→ 3a versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_publicacao.pdf
Novamente estamos vivendo tempos “tarefeiros” de conhecimento aligeirado como pensamento voltado a disciplinarização dos corpos e adestramento da mente . Uma perspectiva educacional voltada ao pensamento compensatório como já vivemos antes , mas hoje com um nível muito mais sério , tendências neoliberais reforçando o surgimento de novas técnicas , novas metodologias em nome de uma educação contemporânea criada para atender avaliações em larga escala e modelos de mercado . Está mais do que na hora da educação infantil retomar sua identidade.
A BNCC, 3a versão vai totalmente na contra mão do que as pesquisas apontam como sendo mais adequadas às especificidades dessa etapa do desenvolvimento humano.
A criança pequena aprende de forma encadeada, diferentemente do que a atual proposta propõe. Uma coisa é articular as experiências das crianças com os conhecimento construídos e acumulados pela humanidade. Outra é trabalhar disciplinarmente, é apenas sob um aspecto do desenvolvimento, o intelectual. A criança aprende e se desenvolve de modo integral, com o apoio das múltiplas linguagens existentes e mais outras que a criança poderá criar, a partir de suas curiosidades e desejos.
Obrigada, Maria de Jesus pelo seu retorno. Ter uma postura questionadora e crítica é fundamental nos tempos que estamos vivendo! Nos colocamos abertas a sugestões de temas de seu interesse. Abraços!
Maravilhoso este olhar referente ao programa. E o pior é que veiculado numa emissora de grande repercussão e a maior do país, muitos podem achar um aspecto importante, sem reflexão ou análise mais apurada.