Por que novos ambientes são tão desafiadores? Por que é difícil voltar para a escola se os espaços, os professores e as crianças são, na sua maioria, as mesmas? O que acontece na relação escola – crianças – professores – famílias na volta das férias? Os primeiros dias do início de cada período letivo são considerados período de adaptação. Alguns especialistas preferem o termo acolhimento. Para nós, ambas as referências são adequadas e o uso depende do lado que se considera nessa relação.
Do ponto de vista da escola, temos, sem dúvida, um período dedicado ao acolhimento, que requer da equipe pedagógica intenção, empenho e planejamento.
Já a criança e a sua família vão passar por um período adaptativo.
Mas de onde vem o conceito de adaptação no âmbito da educação?
O cientista suíço Jean Piaget (1896 – 1980) demonstrou que o conhecimento é construído à medida que o meio provoca um desequilíbrio no ser humano. Isto quer dizer que a cada problema, desafio, aspecto curioso, o ser humano, desde que é bebê, sente um incômodo e tem necessidade de rever suas ideias. A busca por soluções para enfrentar novas situações leva a uma adaptação ou um “conforto” momentâneo, sentido ao esclarecer os pensamentos desequilibrados (equilibração).
As crianças da educação infantil têm no máximo cinco anos, no início do período letivo. Cinco anos são 60 meses de desenvolvimento e amadurecimento. Na velocidade em que esse crescimento se processa, um mês – ou 30 dias – são quase uma era!
Por isso, quando recebemos nossas “velhas crianças” na escola temos muitas facetas novas a descobrir e um período de reconhecimento para despertar. O que já foi vivido deixou marcas e é preciso um tempo para que as crianças relembrem o que viveram.
Assim, o retorno para a escola deve ser processual, construindo uma retomada da familiaridade com os ambientes, a rotina, o encontro com os colegas e os adultos que foram referência no passado, para estabelecer um ambiente aconchegante, construir novos vínculos e novas aprendizagens. Nesse sentido, o termo acolhimento cabe como uma luva à escola.
Por onde começar? O que planejar para acolher?
Um bom começo é levantar com os professores dos anos anteriores as preferências das crianças que serão recebidas e considerá-las no planejamento da primeira semana de adaptação. Atendendo aos gostos e desejos, fica mais fácil criar um ambiente acolhedor e seguro.
Por isso, um cuidado estratégico é planejar a chegada das crianças de forma gradual. Garantir alguns dias exclusivos para as “crianças antigas” favorece sua ambientação e adaptação. Assim, quando os novos chegarem, encontrarão uma atmosfera mais tranquila e segura para se espelharem. Por exemplo, uma turma de crianças de dois anos, que já frequentou a instituição no ano anterior, deverá retornar para a escola três ou quatro dias antes da entrada dos novos colegas. No caso de turmas numerosas, que tal dividir esse retorno em duas ou três etapas para garantir a disponibilidade de acolhida e atenção dos professores?
Os atores da delicada relação
Parceria: família e instituição
Planejar ações para construir uma boa relação com as famílias é o primeiro passo da adaptação das crianças e da cumplicidade no processo educativo.
O espaço e a equipe da instituição podem ser desconhecidos para as família, gerando inseguranças. Criar momentos de conversa, apresentação da metodologia, da rotina, dos ambientes e do processo de acolhimento das crianças, estreita os laços e compartilha o cuidado e a educação.
O educador e curador de Arte, Luis Guilherme Vergara, defende o olhar sensível para esse primeiro momento de tudo, na medida em que a volta das férias será repetida várias vezes na vida das crianças.
Anelise Csapo, que supervisionou o núcleo educativo do espaço cultural Casa das Rosas, SP, relembra a apresentação da casa que fez para seus filhos a cada chegada da maternidade. A acolhida da mãe apresenta a casa, um ambiente ainda desconhecido para o bebê. Expandindo esta ideia, pode ser muito interessante apresentar a escola para os pais de modo a prepará-los para que eles próprios a apresentem para suas crianças. Quando esse processo se inicia com alguém conhecido, a criança sente o elo positivo e a cumplicidade da família com o espaço e com as pessoas ainda estranhas.
É bom lembrar que os pais também se sentem inseguros quanto ao ambiente que acolherá e cuidará dos seus tesouros. O “mistério” do que acontece atrás dos muros da escola intensifica esses sentimentos. Estar inteirado sobre o cotidiano das crianças facilita a inclusão das famílias e favorece a sua participação. Lembramos de uma mãe de um menino de dois anos que chorou ao perceber que seu garotinho podia aprender coisas novas com outras pessoas: não sou mais eu a única pessoa a ensinar meu pequeno!
Uma forma de transmitir os conteúdos do cotidiano para os pais e construir um ambiente tranquilo é cuidar da documentação pedagógica desde o início do período, colocando cartazes e painéis com conteúdos elaborados a partir dos registros fotográficos, relatos e produções das crianças, nas paredes da escola. Outra possibilidade mais dinâmica são as publicações digitais em blog, site e página do Facebook. Para que a comunicação seja efetiva, fotos de carinhas felizes não bastam! É importante divulgar os momentos que revelam a convivência, as experiências e as conquistas das crianças. Para que as famílias compreendam o contexto, também é necessário colocar uma breve narrativa com os objetivos da atividade e uma descrição sucinta do ocorrido. A adaptação é o momento em que as crianças agregam um novo ambiente às suas vidas. Mas é preciso lembrar que esse ambiente também é novo para as famílias.
Crianças e professores: ansiedades e inseguranças
Os primeiros momentos na escola provocam curiosidade, surpresas e angustias. São estes sentimentos que mais sensibilizam a equipe pedagógica que se solidariza com as manifestações emocionadas dos pequenos. Adaptar-se à escola é um processo individual, em que cada criança precisa de um período de tempo diferente, sendo importante respeitar seu ritmo e não impor um período predeterminado. É preciso cuidar também da equipe pedagógica, promovendo momentos de acolhida e reflexão sobre as inseguranças e ocasiões para trocas e conversas. Tendo clareza sobre as emoções envolvidas, fica mais fácil trabalhar esse período com as crianças:
- Antes de chegar à escola– Até 2 anos de idade é fundamental preservar a rotina doméstica da criança. Nesse sentido, uma conversa com as famílias pode esclarecer a equipe pedagógica quanto aos hábitos e horários seguidos em casa. Por outro lado, pode-se combinar um período de adaptação da rotina escolar na própria casa. Por exemplo, se as famílias utilizam o bebê conforto e a escola não faz uso deste objeto, será importante que os pais evitem seu uso para habituar a criança a uma nova postura (colocá-la sobre o colchonete, o tapete etc.).
A partir de 30 meses a criança pode ser incluída na preparação da sua ida à escola. Comprar e arrumar a mochila, separar as roupas ou preparar o uniforme, são ações que criam familiaridade e segurança com a nova situação que está por vir.
Esse começo prepara o ambiente para boas relações: pais-criança-professores; escola-família; coordenação-professores-outros profissionais.
- O suporte da família nos primeiros dias– Bebês são muito sensíveis ao modo como são trocados, alimentados e colocados para dormir. Estas ações podem fazer diferença na construção de uma adaptação segura e afetiva. Os professores tem a possibilidade de conhecer sobre os hábitos cotidianos dos bebês se contarem com a presença dos pais na escola nos primeiros dias. Esta presença é importante também para as crianças mais velhas, que, apesar de se envolverem com novos colegas, brincadeiras e desafios, precisam construir um sentimento de segurança em relação ao ambiente.
- Medo de ficar para sempre na escola– Apesar do acolhimento da professora, é bom que os pais esclareçam à criança o que irá acontecer na escola e que irão buscá-la no final do período. A despedida é fundamental para a adaptação e ela deve ser pautada na honestidade e na confiança. Assim, é fundamental falar sempre a verdade para a criança. A equipe deve conversar com os pais para que não prometam aquilo que não farão ou não cumprirão. Quando o responsável for embora, deve sair sem fugir da criança, despedindo-se, mesmo que ela chore. No final da despedida não esquecer de dizer que irá voltar. Nesse sentido, solicitar que os responsáveis retornem no horário combinado. Por outro lado, é essencial não prolongar as emoções da despedida! Assim que ocorrer a despedida, instruir os pais a deixarem o recinto.
- Desejo de ficar com a mamãe– Claro que a criança deseja ficar com quem conhece, seja a mãe, a avó, o pai ou o cuidador. O vínculo com os professores e demais funcionários está apenas começando. Os professores devem fazer uma forte parceria com os pais e não concorrer com eles. Um exemplo comum dessa situação é tirar a criança do colo do responsável. Uma boa dica é pedir para o familiar colocar a criança no chão primeiro. No caso de bebês, o adulto responsável deve entregar a criança para o professor.
- Desejo da presença de um pedacinho de casa (objeto transicional, Winnicott)– Caso a criança queira, permitir que traga objetos de casa. Essa é uma maneira de se sentir reconfortada por um elo familiar. É como se a criança estivesse levando “uma parte de sua casa” para a escola. Aos poucos, ela vai trocando tais objetos por brinquedos e brincadeiras da rotina escolar. Ao longo do ano, outras situações podem trazer de volta o desejo de estar com o objeto transicional.
- Evitar perguntar à criança se ela quer ir à escola– Essa é uma decisão que deve ser tomada pelos pais e responsáveis e não pela criança. Em casa a criança é geralmente o centro das atenções. Na escola, o pequeno vai começar a vivenciar as experiências de pertencer a um grupo, uma vida vivida no coletivo. Assim, é importante que os pais expressem o entusiasmo pelas oportunidades de brincar, conhecer, criar e se relacionar.
O primeiro vínculo na escola: uma relação pessoal
Em casa a criança passou a sua existência ou as férias em ambientes conhecidos sendo o foco de atenção dos adultos. Às vezes esquecemos que lidar com a vida em grupo é um grande desafio e esperamos que ela sinta prazer de imediato!
A delicadeza desse período se traduz no conhecimento do professor sobre cada criança, demonstrando que se interessa por ela e reconhece suas características. Ao estudar a relação de cuidadores com crianças pequenas, a pediatra húngara Emi Pikler, defendia o conceito do “adulto referência”, um profissional empenhado em conhecer e se relacionar diretamente com um grupo de crianças.
Muitas das turmas da educação infantil têm dois ou mais professores por sala, que se alternam em receber, trocar, brincar e alimentar as crianças. Essa alternância no início da relação não favorece a formação de vínculos iniciais e não constrói a ideia do adulto referência. Na primeira etapa, é importante o professor se conectar com um grupo de crianças e mantê-lo sob sua responsabilidade nos momentos de chegada, saída, acolhimento e cuidado, mas isso não exclui a construção de relações com os outros adultos da escola.
A ideia de adulto referência é importante também para as crianças mais velhas que se sentirão mais seguras ao contar com uma pessoa mais próxima e conhecida.
Perceber para conhecer
Diferentes situações de brincadeira favorecem a expressão das características individuais das crianças. As informações colhidas pelos professores nesses momentos são valiosas para o início de um trabalho pedagógico que respeita a singularidade. Planejar as primeiras semanas do ano com essa intenção é fundamental para construir uma relação de afeto cuidadoso e definir propostas pedagógicas compatíveis com os interesses e necessidades das turmas.
Para conhecer os pequenos podemos organizar espaços e materiais provocativos, de maneira a permitir liberdade de escolha e interação. A dinâmica de dar autonomia para que as crianças possam escolher com o quê e como brincar, favorece a brincadeira, o olhar observador do professor e revela direcionamentos para os futuros planejamentos.
Algumas inspirações:
- Planejar um momento coletivo de brincadeiras para as crianças, as famílias e os educadores na chegada à escola.
- Planejar e organizar as salas com propostas de cantos e materiais diversos. Receber os pequenos dessa forma vai surpreendê-los, provocá-los e interessá-los. Pode-se rodiziar as propostas e repetir esse processo por duas ou mais semanas, conforme o interesse das turmas:
- Um dia para brinquedos separados em cantos: blocos e jogos de montar; carrinhos e caixas para garagens; bonecas e caixas/bacias para bercinhos e banheiras; brinquedos sonoros; livrinhos etc.
- Outro dia, cantos com caixas, caixotes e sucatas diversas: tubos, caixas plásticas transparentes, pedrinhas, folhas, sementes, galhos, jornais e revistas. Sabemos que os materiais de largo alcance (não estruturados) despertam criatividade e narrativas. Brincar com materiais que não trazem uma “mensagem pronta” promove nas crianças um trabalho interno de elaboração de novas brincadeiras.
- No terceiro dia, objetos pendurados: montar cabanas com tecidos; pendurar móbiles e alguns brinquedos em molas, barbantes e elásticos; pendurar cortinas plásticas, papel celofane colorido e outros materiais transparentes; objetos sonoros; pequenas garrafas pet com água e elementos coloridos.
- Outro dia para livros, revistas, almofadas e colchonetes. Tendas separando diversos ambientes acolhedores para a leitura também compõem a proposta. Nesse caso é bom pensar em materiais alternativos para as crianças que ainda não se interessam pelos livros.
- Finalmente, no último dia desta sequência, organizar papeis e riscadores para desenhar em diversos planos. Colocar grandes folhas de papel nas paredes e no chão, criar cantos para desenhar em folhas de papel sulfite, cartolinas e outros suportes. Se houver lousa, disponibilizar giz.
As escolas de educação infantil de Reggio Emilia (Itália) trabalham com a mediação de pequenos grupos de crianças, reunidos pelo interesse comum do tema da pesquisa. Essa é uma oportunidade para o professor experimentar o funcionamento dessa dinâmica e planejar as intervenções para ampliar as descobertas e criar novos desafios para os diferentes grupos.
É importante lembrar que cada criança é um individuo singular e pode não se interessar pela proposta do dia. Baseado na observação e avaliação do interesse das crianças nas propostas anteriores, o professor pode manter os cantos com os objetos que mais provocaram brincadeiras e adequar a organização dos cantos que ainda não interessaram os pequenos.
Essas ações podem ser planejadas em conjunto com toda a equipe pedagógica e rodiziadas entre os professores e suas turmas, facilitando os planejamentos iniciais e a organização dos materiais.
São muitas questões, dicas e ansiedades. O fato é que as crianças gostam de ir a uma escola desafiadora e acolhedora. Não tem erro! Os pequenos vão superar as delicadezas da adaptação e os vínculos com os professores vão se estabelecer. Winnicott dizia que é justamente a partir da experiência fundante de “estar com” que se desenvolve a capacidade igualmente fundamental de “estar só”.
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PARA SABER MAIS…
→ Leia as postagens completas com as falas de Luis Guilherme Vergara e Anelise Csapo:
→ Leia sobre Emmi Pikler nas postagens:
- Educação dos 0 aos 3 anos: contribuições de Emmi Pikler
- Palavra de… Sylvia Nabinger: filosofia e práticas Emmi Pikler
- 12 dicas sobre Movimento e Aprendizagem a partir de Emmi Pikler
→ Leia mais sobre o período de adaptação e acolhimento nas postagens:
- Adaptação: emoções à flor da pele
- Adaptação em processo: você já é o brinquedo favorito das suas crianças?
- Professoras sabidas: seis dicas práticas para a adaptação
Ótimo texto! Minha contribuição para o acolhimento na educação infantil é uma espécie de QUADRO DE ENTRADA no começo do ano. Na escola em que trabalhei nos anos 1980, OGA MITÁ (Rio de Janeiro), discutíamos sobre a chegada das crianças em grupos menores, tipo de 2 crianças/dia ou a cada 2 dias, paulatinamente, nas primeiras semanas de aula, organizando um quadro com semanas/dias. Os critérios para se definir quais crianças viriam e em que ordem, eram: 1. Quem tem irmão/parente/amigo mais velho na mesma escola; 2. Os mais velhos da turma; 3. Quem já frequentou escola antes; 4. E finalmente os mais novos. Essa escala funcionava muito bem, pois nos possibilitava dar colo para todas, estar mais próximo delas. E no fim do turno conversávamos sobre cada criança, como cada uma nos pareceu, o que gostaram, não gostaram, o que poderíamos fazer no dia seguinte com base nesses aspectos. A escola funcionava numa casa, e na varanda ficavam pessoas de referência das crianças, como se fossem a margem do rio, para o caso de “faltar pé” nessas primeiras braçadas das crianças.
Nossa, Claudia! Que dicas ótimas! E quanto pensamento poético. Você não quer elaborar um pouco mais esse texto para a gente publicar? Se tiver fotos e outras informações, vai ser muito proveitoso para outros professores! Por favor, se “topar” nosso convite, entre em contato conosco pelo e-mail [email protected]
Abraços!
Parabéns pelo material e muito obrigada por fazer essa troca.
Amei a postagem, temos no nosso CEI o acolhimento como princípio humano ou seja, acolhemos o ano todo e a todos.
Mábia
A postagem é muito interessante é nos leva a refletir a importância do processo de adaptação, realmente tudo começa pelo acolhimento, como dizem: “A primeira impressão é a que fica!”
Marlene,
Que ótimo que gostou e que estamos na mesma sintonia. Força nesse período emocionante!
MUITO BOM O TRABALHO!!! TENTEI ME CADASTRAR MAS NÃO CONSIGO.
Ana, estamos providenciando uma reprogramação para melhorar o cadastro na área de assinante do blog. Pedimos um pouco de paciência! Abraços