Em seu depoimento, a professora Denise Nalini nos coloca a importância das ações de construção de parceria na relação escola e família. Relações que valorizam atitudes de respeito e de escuta, sendo planejadas com intensão pedagógica e tendo previsão de ações específicas.
Tempo de Creche – As famílias sabem o que esperar da Educação Infantil?
Denise – Na minha perspectiva, o trabalho com as famílias deve acontecer num processo que podemos chamar de formação da demanda. É a primeira vez que uma família tem contato com uma instituição de educação, portanto a forma como é tratada marca suas expectativas em relação ao que será uma boa ou não educação. Em termos nacionais, a chegada da população brasileira à Educação Infantil é recente. Até pouco tempo atrás, a creche era compreendida apenas como um direito da mãe e não da criança. Dessa maneira, as famílias tinham medo de dar informações, pois corriam o risco de perder a vaga do filho, essas práticas ao invés de aproximar as famílias das creches, afastou e gerou tensão. Além disso, grande parte das mães e pais viveram um modelo de escola, em que a tônica era a cópia, a pasta cheia e a criança quieta. Pensar em valores de uma nova educação, refletir sobre o papel da brincadeira auxilia os pais a compreenderem que padrão de qualidade em Educação Infantil é muito mais do que criança limpa ou criança quieta.
Tempo de Creche – O que a creche precisa fazer para que as famílias compreendam a perspectiva da Educação Infantil atual e construir as novas demandas?
Denise – A creche pode desenvolver com as famílias uma perspectiva de parceria e de investimento numa ação que é conjunta. Antes de querer ensinar a família a creche deve compartilhar com as famílias e as crianças sua forma de trabalho. Explicar o que é adaptação, acolhimento, informando sobre a importância da arte, da questão do brincar – central nesta faixa etária. Esse trabalho é fundamental porque a referência que as famílias têm é o padrão de crianças sentadas, pintando um desenhinho xerocado das datas comemorativas. É preciso mostrar às famílias que isso é ultrapassado e não ajuda a criança em sua aprendizagem.
Para a formação de uma nova demanda [isto é, formar famílias que compreendam de fato as dimensões da Educação Infantil e passem a cobrar essas dimensões das instituições] é preciso proporcionar para as famílias vivências do que seria um modelo de atendimento da criança pequena, que diverge dos modelos escolarizados centrados em cópia.
Ao fazer formação nas creches é preciso investir em como a instituição tem que trabalhar com os pais sobre o entendimento e o papel da Educação Infantil para seus filhos.
Tempo de Creche – Em que momentos a creche deve construir esta relação com as famílias?
Denise – É preciso fazer isso numa vivência cotidiana.
Não adianta fazer uma primeira reunião com as famílias e falar: olha gente, aqui não é assim, trabalhamos de jeito diferente. O modelo das famílias é muito forte e quando elas têm oportunidade de escolha, querem que o filho vá para a escola particular [que trabalha no formato escolarizante]. Isso é ruim, porque a criança passa quatro horas sentada pintando, e tudo é feito para ela não se mover, perdendo a oportunidade de desenvolver a sua expressão corporeidade e os movimentos. Esse é o [panorama] geral das escolas particulares mais acessíveis à população de baixa renda. Nesse aspecto, as instituições públicas são muito mais interessantes, mas ter filhos em escola pública significa participar ativamente desse processo. A melhoria da escola passa pela presença constante dos pais.
E quem não conhece ou só tem um acesso controlado, avalia a escola pela sua experiência. As famílias acabam, então, optando por pagar por um formato escolarizado porque a experiência que tiveram na própria escola foi essa: a boa escola é a que eu tive. Elas não tem outra referência.
Acontece muito da creche ouvir das famílias: vai ter atividade na pasta? (isso para crianças de um ano e meio!) Então, a equipe da creche pergunta: como assim, atividade na pasta? E as famílias respondem dando exemplos: a filha da fulana de tal, que está na escola “Patinho Feliz”, todo mês leva a pasta cheia para casa. Então, aqui vai ter pasta? Esta questão é levantada muito frequentemente. Eu acho isto importante porque denota uma preocupação da família com a qualidade da Educação. Por outro lado, indica que “esta qualidade” vem da vivência anterior das famílias.
Tempo de Creche – Como ajudar os pais a compreenderem o trabalho da Creche?
Denise – Temos que fazer um trabalho frequente buscando iluminar essa questão: o que as crianças estão aprendendo aqui? Tem a pasta cheia, mas quando a criança brinca, está aprendendo o quê? O que é a pasta e o que ela ajudaria na vida do filho? E a creche então vai levantando situações e trabalhando com as famílias: porque é importante ter estímulos; ter um ambiente no berçário que não é escuro; porque é importante que a criança passe duas horas dormindo, num período de quatro horas; porque não é a ação principal que a criança vá limpíssima para casa. Essa questão da sujeira é importante, que a criança possa se sujar e não precise ir para a casa limpa significa uma compreensão de que ao brincar todo o corpo entra em ação, que o contato com areia, água, terra é importante para as crianças aprenderem sobre o espaço o ambiente.
Essas discussões vão fazendo a família ser acolhida e vão construindo um outro modelo de escola. A gente percebe que nas regiões onde a comunidade é mais atuante, a pressão familiar vai fazendo a escola ficar melhor. Quando entramos na creche [como equipe de formação] assumimos o papel de formar as famílias para que sejam mais atuantes. Primeiro porque elas acham que não sabem nada, o que não é verdade. Tem mães que trazem coisas muito interessantes. Isso fica claro quando os educadores falam: olha quando ele toma leite, ele chora, mas não sabemos o porquê. Certamente a mãe vai saber o porque!A gente sabe que o número de crianças com intolerância à lactose tem crescido, mas isso não é identificado facilmente e às vezes as famílias sabem e optam por esconder para não perderem as vagas na escola. Assim, esses saberes podem ser levantados com as famílias. Não fazer isso prejudica a melhoria da educação.
Tempo de Creche – Como você vê a postura de algumas famílias que se descolam das crianças quando elas estão na creche? Por exemplo “quando criança sai de casa, não é mais nossa responsabilidade. Quando ela está dentro da escola, a escola toma conta”.
Denise – Isso bate na expressão do que é o acolhimento. Acolhimento não é deixar a porta aberta. Acolhimento é estar preparado para receber e enfrentar os conflitos existentes no estabelecimento das relações. E cada relação é uma, porque cada família é única.
Esta construção e este diálogo são fundamentais para o processo de adaptação, que têm duas faces: a melhoria da qualidade da educação e a criança que vai estar bem na escola, que vai gostar de ir à escola.
Tempo de Creche – Você poderia deixar alguma orientação para coordenadores e professores construírem uma chegada mais sensível à escola? Como é que este primeiro momento para começar a criar uma relação?
Denise – O investimento começa na matrícula. É um processo que precisa ser individual e os educadores necessitam pelo menos uma hora para se dedicar a conhecer a família. Este primeiro contato é fundamental. Do ponto de vista prático, pode-se deixar um café na entrada, uma bolacha, água. É mostrar essa espera pelas famílias, um acolhimento.
Também é importante promover um agendamento de horários de matrícula para evitar que as pessoas fiquem três horas esperando. Do contrário, no momento que chegar a vez de receber o responsável, ele vai chegar com quatro pedras na mão, porque talvez perdeu seu dia de serviço. Por isso, o agendamento é importante.
Quando a creche fala do seu trabalho – Aqui está tudo bem! Vamos discutir sobre isso? Vamos dialogar? Pode entrar e veja como seu filho está! – ela vai gerando nas famílias a perspectiva da interação (e não de atirar pedras!). Aí nasce aquela ideia de que é preciso uma aldeia para educar uma criança (proverbio africano). Conforme vai aumentando a faixa etária das crianças, as escolas vão tendo muito medo de estabelecer relações com as famílias. As famílias precisam estar dentro [das instituições de Educação] porque, quando acontecem situações indesejáveis, elas são as primeiras a protegerem a escola. Quando você tem uma escola mais aberta e chama para um mutirão, todo mundo vem para atuar e construir. Isso se chama construir consciência da importância da educação para todos. Esse é um caminho que é sim função das creches e de todos os envolvidos no cotidiano com as crianças.
Leia: Diálogos sobre relações: famílias e creches unidas na educação I, II, III e IV
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Denise Nalini é doutora em Educação na FEUSP – SP, coordenadora pedagógica no instituto Pró Saber, formadora no Instituto Avisa Lá e professora de pós graduação do Instituto Singularidades, SP.
É importante acolher bem aos pais,para que se sintam seguros em relação a escola, porém alguns pais interpretam essa atitude de outra forma, intervindo no trabalho do educador .
Como os profissionais da creche lidam com os conflitos comuns entre familiares e profissionais a respeito das diferentes maneiras de cuidar, como o que é melhor para cada criança, como ela gosta, o que o pediatra recomendou, ou se a mãe ou pai não concordam que seu filho precisa de avaliação da febre, ou que gostaria que usasse um patuá para protegê-lo, ou não concorda em vacina-lo ou oferecer carne devido sua filosofia de vida?
Trabalho com famílias de creches há 30 anos, e sei que os conflitos são constantes, constituintes da relação. Precisamos negociar devido o bem estar das crianças. Mas estariam os professores preparados para isso? Ou se por religião uma família não concorda em celebrar o aniversario de seu filho na creche?
Olá, Damaris. Obrigada pelo. Muito pertinentes suas preocupações. A relação escola e famílias é construída no dia a dia e nas oportunidades de encontros e diálogos. Procure aprofundar esse tema com a leitura das postagens: Diálogos sobre relações: famílias e creches unidas na educação. São abordados os mais importantes aspectos da construção desta parceria, a partir dos primeiros contatos, dos momentos de reunião, as formas de comunicação e as reuniões específicas. Abraço