Palavra de… Magda Soares: criança e a reinvenção da escrita

Palavra de… Magda Soares: criança e a reinvenção da escrita

Na segunda postagem da conversa com a educadora e estudiosa Magda Soares, pesquisadora de alfabetização e letramento, enfocamos os processos da criança ao desenvolver suas habilidades de comunicação e a construção da parceria com as famílias durante o letramento e o início da alfabetização. Para Magda, a criança imersa na cultura da escrita naturalmente se interessa por ela e repete, de certa forma, a trajetória criativa da humanidade na sua invenção, usos e práticas.

Antes de mergulhar em mais um texto esclarecedor e inspirador, Magda compartilha uma observação que vem fazendo ao longo dos seus anos de trabalho com crianças pequenas: a criança quer compreender o mundo que a circunda, e quer que a esclareçam sobre esse mundo circundante. Quando se pergunta a uma criança prestes a entrar em instituição de Educação Infantil  “por que você quer ir para a escolinha?”, a resposta é quase sempre “para aprender a ler”, raramente a resposta é  “para brincar”.

Parte 1: Letramento ou alfabetização? Os dois!
Parte 2: Crianças e a reinvenção da escrita

Crianças e a reinvenção da escrita

Crianças desenhando com gizTempo de Creche – Alguns estudos ressaltam a importância da criatividade das crianças pequenas quando começam a se apropriar do código linguístico. Outros estudos colocam que a criança pequena começa a se comunicar por meio de imagens e que esse percurso se perde quando elas iniciam a alfabetização e o uso das palavras escritas. Como você vê estas questões?

Magda Inicialmente, proponho substituirmos  “código” por “representação”, pois os sons da língua não são “codificados” em letras, mas “representados”  por letras, e isso resulta em significativa diferença na compreensão dos processos da criança e, em decorrência, em sua orientação.

Também proponho não nos restringirmos à apropriação do sistema de representação alfabético, mas, mais amplamente, à inserção plena da criança na cultura do escrito: inserção no letramento, considerando a alfabetização um dos componentes do letramento (como disse na primeira postagem Palavra de… Magda Soares: a linguagem escrita na infância, alfabetização e letramento são interdependentes e indissociáveis).

Na verdade, o desenvolvimento da criança na compreensão do sistema alfabético e dos usos e práticas da escrita é uma surpreendente demonstração de sua capacidade criativa. A criança repete, de certa forma, a trajetória criativa da humanidade na invenção da escrita e de seus usos e práticas, basta que não  atropelemos sua criatividade com a impaciência de poupar tempo e “ensinar” logo o que já sabemos… e com a ansiedade para que ela “aprenda” logo o que é preciso deixar que ela, em seu próprio ritmo, construa, com as oportunidades que vão sendo oferecidas a ela para essa construção.

A criança começa, sim, a se comunicar por meio de imagens. Aos poucos, e com orientação respeitosa e compreensiva, vai compreendendo que imagem se diferencia de escrita, e que ambas são formas de comunicação (lembre-se do exemplo na primeira postagem, em que a professora, ao ler histórias, vai levando a criança a diferenciar ilustração de texto, mostrando como a ilustração ora representa ora complementa o texto).  Chega um momento em que a criança “escreve”, com rabiscos ou com garatujas ou com grafismos ou com sua escrita espontânea, e ilustra sua “escrita” com um desenho. É frequente isso ocorrer, e é um enorme passo da criança na compreensão da diferença entre texto e desenho e uma demonstração de uma criatividade que sabe se manifestar em escrita e desenho.

Desenho e letramento

 Tempo de Creche – Que conhecimentos fundamentais faltam ao professor de Educação Infantil para um letramento mais lúdico e próximo do universo da criança?

Criança desenhando no cadernoMagdaLamentavelmente a formação de professores para o letramento, não só na Educação Infantil, mas também nos anos iniciais do Ensino Fundamental, é precário, quase inexistente.  Professores para orientar o letramento, incluindo aqui a introdução ao sistema alfabético de escrita, precisariam conhecer os objetos de conhecimento de sua atuação:

  • Compreender o que é letramento e o que é alfabetização, as diferenças entre um e outra e, ao mesmo tempo, a indissociabilidade dos dois;
  • Saber identificar que materiais escritos são adequados e motivadores para as crianças, na creche, na pré-escola (por exemplo, conhecimento da literatura infantil, capacidade de análise de ilustrações e projetos gráficos próprios para cada idade…);
  • Conhecer a diferença entre diferentes portadores de texto – revista e livro, jornal e revista, etc., conhecer os diferentes gêneros que esses portadores oferecem à leitura.

A professora deve saber como ler um livro de história para a criança. Dou um exemplo mais detalhado:

  1. Com que postura corporal, com que gestos[1], com que perguntas – antes da leitura, levando ao reconhecimento do objeto “livro” e suas partes, a previsões sobre o tema da história.
  2. Durante a leitura, fazendo perguntas cuidadosamente planejadas, para que levem as crianças a operar cognitivamente, desenvolvendo habilidades de interpretação;
  3. Depois da leitura, com perguntas de avaliação do comportamento de personagens, da solução que foi dada a problemas, etc.

Quanto à introdução ao sistema alfabético, professoras, que, na educação infantil, não são alfabetizadoras, precisam, porém, conhecer as etapas de desenvolvimento da criança em seu processo de compreensão da escrita, tanto do ponto de vista psicogenético quanto do ponto de vista fonológico. Precisam conhecer o sistema alfabético e a ortografia do português, para que saibam compreender as hipóteses que as crianças fazem sobre a escrita e assim saibam como ajudá-las a avançar. E precisam sobretudo saber como desenvolver atividades que respondam aos interesses das crianças, associando letramento e escrita a outras atividades lúdicas, tal como letramento e escrita se associam em grande parte das atividades da vida cotidiana.

Tempo de Creche – Como lidar com a expectativa das famílias quanto ao processo de alfabetização de suas crianças?

MagdaEm geral os pais, sejam os que encaminham suas crianças para escolas privadas, sejam os que buscam as instituições públicas, têm a expectativa de que elas aprendam a ler e a escrever na Educação Infantil, o que é compreensível neste nosso mundo em que a escrita é tão intensamente demandada. Lembre-se que algumas décadas atrás aceitava-se sem discussão que a criança se alfabetizaria aos 7 anos, na entrada do ensino fundamental.

Com a obrigatoriedade da educação a partir dos 4 anos, e a consequente ampliação de oportunidades de acesso à educação infantil, muitos pais passaram a entender que o que se fazia aos 7 anos deve ser feito agora aos 4, 5 anos. Não consideram o processo de desenvolvimento cognitivo e linguístico da criança que, anteriormente aos 7 anos, ainda não adquiriu condições para se apropriar plenamente de um sistema de escrita abstrato e arbitrário como é o sistema alfabético.

Criança desenhando

Para evitar que pais cobrem das instituições de educação infantil e de seus professores uma alfabetização plena que, antecipada, só prejudicaria as crianças,  penso que gestores e professores precisam esclarecê-los sobre as etapas pelas quais a criança passa, até chegar a essa apropriação plena. Assim entenderão que há um processo relativamente lento de compreensão das letras como representação dos sons mínimos da fala, os fonemas; que os rabiscos e garatujas da criança são indicadores da descoberta fundamental de que a escrita não representa as coisas de que se fala, que é o que ela pensa quando desenha pensando estar escrevendo, mas a escrita são linhas, formas gráficas que as pessoas traçam quando escrevem.

O que eu tenho sugerido a professores de educação infantil é que, em reuniões de pais, analisem as produções das crianças evidenciando o desenvolvimento delas no processo de aquisição da escrita, o progresso que cada traçado de letra, cada rabisco, cada garatuja representa. Já tive experiências em que pais e mães ficaram surpresos ao saber que os rabiscos, as garatujas, as escritas com letras aleatórias, em geral apenas com as letras do próprio nome, que a criança decorou, são passos importantes e necessários no desenvolvimento em direção à aquisição da língua escrita.

As crianças sentem que estão progredindo, os professores elogiam seus avanços, seria importante que os pais fizessem o mesmo. Costumo dizer que, atualmente, no que se refere ao processo de alfabetização, cabe a nós, professores, não só orientar as crianças em seu processo de aprendizagem da língua escrita, mas também esclarecer os pais sobre esse processo.

[1] Não resisto a dar um exemplo pessoal da importância da postura e dos gestos do adulto na leitura para crianças pequenas: uma neta, aos 4 anos, fingindo ler um livro para as bonecas, a cada passar de página lambia o dedo. É que a professora, ao ler histórias para as crianças, lambia o dedo para passar a folha, e Mariana julgava que aquele gesto fazia parte do ato de ler…

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Balão-Para-Saber-MaisPARA SABER MAIS…

MAGDA-SOARESMagda Soares é professora emérita da Faculdade de Educação (FAE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), e um dos maiores nomes na área de alfabetização e letramento, com ênfase em ensino-aprendizagem. Nas suas palavras…

Leia a primeira parte da conversa com Magda Soares na postagem Palavra de… Magda Soares: a linguagem escrita na infância

Leia mais sobre desenho na postagem O que o desenho nos conta

3 comments

ADOREI LER O TEXTO ME INSPIROU NO MEU TRABALHO DE PESQUISA, PODERIA ME INDICAR ALGUM LIVRO COM ESTE TEMA?

Excelente reportagem. Nos traz a reflexão sobre a presença da linguagem escrita na educação infantil e nos fornece armas para lutarmos contra o senso comum que muitas vezes assola pais e responsáveis e demandam em práticas absurdas de “alfabetização” com as crianças pequenas. Magda Soares é referência e coerência! Bravo!

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