Fernanda Heinz Figueiredo é a idealizadora do Festival de Cinema Ciranda de Filmes . Com a cineasta Patrícia Durães, coordena o festival pesquisando, selecionando e compondo uma programação de filmes voltados para a infância. Temos muito a aprender com esse processo. Ao fazer a curadoria do festival, Fernanda seleciona os filmes a partir de temas, compõe uma grade com obras que se conversam e amplia o alcance dos filmes por meio de espaços de conversa com especialistas.
Selecionar e compor os registros do dia a dia com as crianças também é uma ação de curadoria. O que queremos comunicar? Quais reflexões queremos provocar? Como incluir o outro nesse processo?
Conheça os bastidores do Ciranda de Filmes para se inspirar e aprender com a Fernanda.
Tempo de Creche – Como é a curadoria do festival? Como vocês pensam a seleção dos temas e dos filmes apresentados na Ciranda?
Fernanda – A curadoria vai se fazendo na pesquisa dos filmes. Temos uma ideia formada, mas o festival vai sendo desenhado com mais clareza no momento em que buscamos os filmes e as liberações para apresentá-los. Por exemplo, um filme que sempre quisemos exibir é Central do Brasil (Brasil, 1998). Mas não existem cópias digitais disponíveis.
Tempo de Creche – Então o tema principal da edição da mostra surge do conjunto de filmes que vão sendo selecionados?
Fernanda – Na verdade o tema surge nas edições anteriores. Agora, por exemplo, eu já estou com o tema da próxima edição (a quarta). Durante a pesquisa dos filmes da última edição nós chegamos ao MESTRE como tema para esse ano. Mas precisávamos definir o que do tema MESTRE enfocar: qual a abordagem? Quem são os nossos mestres? Restou, então, delinear a afinação do tema, da abordagem e do que queremos transmitir. Assim, vão surgindo também as pessoas a serem homenageadas. Numa era de incertezas, é importante pensar em quem vamos nos inspirar.
Tempo de Creche – Como vocês delinearam essa temática?
Fernanda – Os MESTRES podem estar aqui ou lá fora, mas quais realmente estão dentro do nosso contexto social e cultural? As nossas pesquisas caminham nesse sentido também. Aliás, levaremos este tema para a discussão.
Claro que a primeira referência é o mestre que está na escola. Também existem os importantes mestres da cultura popular. Mas a criança é o nosso grande mestre.
Por outro lado, num momento ou num encontro, uma pessoa nos transforma, mesmo que nunca mais voltemos a vê-la. Assim, ela se tornou alguém muito importante para a nossa vida. Nessa Ciranda, nós olhamos para as pessoas desta forma, de um jeito amplo.
Outro aspecto que desperta inspiração é a Arte. Nessa edição ela também é considerada um mestre.
Tempo de Creche – Como é isso? A Arte é vista como mestre e inspiradora da expressividade?
Fernanda – Vemos a Arte como linguagem expressiva da criança. A arte que é brincadeira possibilita a elaboração de expressão e que dá sentido às coisas. Com isso, pautamos os espaços.
Na realidade, estes temas são recorrentes, infância e desenvolvimento humano vão sempre aparecer nos Cirandas, mas, às vezes com um novo viés.
Tempo de Creche – Como entendemos isso: então, a abordagem e a organização dos temas centrais variam a cada ano. Os eixos são sempre os mesmos, mas a forma como eles vão sendo organizados é que vão dando direções.
Fernanda – Sim, é isso.
Fica interessante fazer um paralelo com a documentação pedagógica e os conteúdos que os educadores precisam selecionar para apresentar:
- para seus colegas, como troca de experiências;
- para as crianças, como memória do vivido e significação de aprendizados;
- para pais e famílias, como relato e exposição dos processos de aprendizagem e produção das crianças.
Passamos pelo mesmo processo! Os temas centrais são recorrentes: como está acontecendo o desenvolvimento infantil – a identidade, as relações, as pesquisas e a expressão. Mas o que disso tudo é interessante apresentar? A partir dessa reflexão, como apresentar, em que formato?
Conforme o depoimento da Fernanda, é fundamental mergulhar na pesquisa das nossas matérias primas que, no caso da Ciranda são os filmes, mas no nosso caso, são os registros e as produções dos pequenos. Nesse processo de pesquisa e reflexão é que os caminhos para identificar os aprendizados vão surgindo e, os formatos para apresentá-los, vão se revelando.
Tempo de Creche – Então, este ano o olhar da mostra é para o MESTRE, pessoa; a ARTE, inspiradora da expressividade; e o ESPAÇO que fala e educa. Como você vê então o cinema como mestre-referência? Como que ele tem transformado o público desta mostra?
Fernanda – É muito interessante ver a reação das pessoas depois dos filmes. São múltiplas as reações. Tem gente que quer sentar e conversar. Tem gente que quer ficar quieta. Quando o filme dialoga com o coração, a viagem é individual, mas, estando no cinema, é uma situação coletiva. Uma energia que flui, compartilha choros, risadas… Às vezes você tem uma reação com uma cena e as pessoas em volta tem outra oposta e você não entende. São as emoções coletivas que acontecem. É diferente de estar em casa sozinho. Como espaço, o cinema tem esta maestria e como linguagem, ele tem todo o poder da imagem. Um bom filme tem tudo isso por trás. O cinema tem elo com a contação de história, com o teatro de sombras, e a construção de narrativas.
Tempo de Creche – Qual o perfil do público que frequenta a mostra?
Fernanda – Cada vez mais a mostra acolhe a diversidade e conquista um público diverso. Pensando na apropriação de temas preocupados com a Educação, é primordial que a gente tenha bons filmes não só no conteúdo, mas cinematograficamente falando. Assim, também atraímos quem quer simplesmente assistir um bom filme.
Tempo de Creche – Esse é um ponto que a escola precisa aprender. Sair dos muros e incluir todo mundo.
Fernanda – Todo mundo é educador, a sociedade precisa assumir isto e não ficar transferindo para a escola ou para a família. Ou ainda a família que transfere a responsabilidade para a escola e a escola que diz que não é papel dela. Não dá mais para ficar discutindo em cima deste tipo de passa passa. Chega. Tem que discutir o que é importante. O público da mostra é diverso, sendo a maioria composta por educadores. Mas temos muitos pais e mães. Inclusive temos muitos homens que prezamos, uma vez que sabemos que o universo dos encontros de educação é feminino. Participam também arte-educadores e pessoas interessadas nos filmes.
Tempo de Creche – O que os educadores buscam na mostra? O que você identifica como expectativa e o que eles encontram?
Fernanda – Quando eu estava desenhando a Ciranda lá atrás, antes de encontrar com a Patrícia (Durães) e com o Instituto Alana, eu já sabia que existia uma demanda por filmes que falassem de educação, para refletir sobre o tema através de uma linguagem artística que fala com o sensível. Foi surpreendente perceber que um filme sobre uma escola numa pequena vila rural francesa, Ser e Ter, bateu recordes de audiência na França e por onde mais passou.
Tempo de Creche – É um olhar universal para o MESTRE. Também as crianças tem muitas semelhanças umas com as outras.
Fernanda – Infelizmente não conseguimos trazer o Ser e Ter para a mostra, mas outra história que chamou a atenção foi Educação proibida. É um filme muito denso e mesmo numa versão longa, de duas horas e trinta minutos, foi visto por milhões de pessoas na internet. Estes dois filmes são referência para pensar e discutir educação e infância.
Quando lancei o filme Sementes do nosso quintal, não queria fazer apenas uma seção, queria incluir uma discussão mais ampla, com outras referências para conversar. Patrícia (Durães) e eu, nos surpreendemos com o público. Criou-se um espaço de encontro e de trabalho a partir da emoção, do pensar, se sensibilizar e refletir a partir de uma linguagem que toca o coração.
Algumas joias da Ciranda de Filmes 2016
→ O filme de abertura, O dono da terra, fala da relação do ser humano com o barro, do saber ancestral de uma região no Brasil que é pouco conhecida. Fala também da ruptura na transmissão deste saber, ou seja, numa região que convive com a falta de perspectiva, as crianças e adolescentes estão indo embora. O filme fala quase de ausência da infância.
→ O curta de encerramento, Meninos e Reis, fala de um ritual de final da infância, no qual uma menina passa a coroa para a irmã mais nova, ela está se despedindo da infância. É um filme que mostra a criança completamente apropriada do ritual e a festa é dela, o reisado é dela. São as crianças fazendo.
→ Jonas e o Circo sem Lona fecha a Ciranda junto com Meninos e Reis. O filme fala da despedida da infância de um menino com um circo no quintal da casa, o qual luta para manter vivo já que não tem interesse na escola. É uma história interessante que enfoca a escola que não olha para o desejo da criança.
→ Ao Mar (Alamar) conta a história de um pai com seu filho no mar. Destaca a relação forte com a natureza e as relações do filho, do pai e do avô. É muito sensível.
→ A Terra (The Land) fala de um parque no País de Gales (Reino Unido) mostrando bem a condição de confiar na capacidade da criança, a relação com o risco, com o perigo.
→ O Brincante é um documentário escandalosamente lindo, um olhar lírico sobre o universo de Antônio Nobrega, brincante-guardião das manifestações populares, que vai participar de uma seção.
→ Os filmes Na ponta dos pés (A Pas de Loup – belga), que fala de uma menina abandonada pelos pais, e Nana, são fortíssimos e trazem muito do imaginário das crianças.
→ O filme Todo Tempo do Mundo questiona as relações com o tempo e a natureza. Uma família se muda para uma região remota e selvagem do Canadá para passar um ano. Passa por uma série de surpresas, desde não ter acesso à TV, energia, água corrente e relógios, até aprender a lidar com a natureza e seus recursos. O filme suscita muitas conversas.
→ Neste ano nos vamos fazer uma homenagem ao Mário de Andrade, e convidamos o Antônio Nóbrega para falar sobre o filme Mario e a Missão, que resgata a missão dele na busca por artistas populares.
Tempo de Creche: todos os filmes da mostra fazem a gente mergulhar por inteiro nos assuntos abordados. São histórias que sensibilizam todos os sentidos e provocam muitas reflexões e aprendizados. Para o filósofo francês contemporâneo Edgar Morin, o espectador do cinema não participa na prática das histórias que vivencia nos filmes, porém a “cristalização mágica” das outras realidades tem o poder de se tornar psíquicas e afetivas, penetrando fundo em nós.
Acompanhe a programação do Ciranda de Filmes 2016 e, se estiver por perto, assista aos filmes, discussões, oficinas e mesas redondas. É tudo gratuito e … de coração!
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Fernanda Heinz Figueiredo dedica-se, juntamente com seus parceiros da Aiuê Produtora, à produção de conteúdo relacionado a educação, cultura e sustentabilidade. Sementes do Nosso Quintal (2014), seu primeiro longa, premiado pelo público da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e no Festival du Film d’Éducation na França. Dedica-se hoje à concepção e direção de séries para a TV sobre arte e cultura brasileiras.
Leia mais sobre o filme Sementes do nosso quintal, da Ciranda de Filmes 2014 na postagem Sementes do Nosso Quintal – um filme lindo e um ótimo recurso para reuniões e paradas pedagógicas .
Leia sobre o filme Escolas da Floresta, apresentado na Ciranda de Filmes 2015, na postagem Natureza, riscos e brincadeiras numa discussão que dá o que pensar
Acho que evento como o Ciranda, é um previlégio uma oportunidade e contribuição “única”
acontecer num país tão pobre em sistema educacional .
Parabéns aos ” CIRANDOCAS”
Roberto,
Obrigada pelo retorno. Estamos com você! Também entendemos o Ciranda como uma iniciativa transformadora que esperamos que possa viajar por muitas cidades do Brasil.
Abraço